sábado, novembro 22, 2003

«O» pedido de desculpas

Sensível como poucas, a gerência do Esquizofrenias pretende de uma vez por todas sublinhar o facto de não ter sido sua intenção ofender os seus estimados e fiéis leitores quando disse – num, aparentemente, infeliz «post» - que só tinha dois visitantes assíduos no blog.

Os protestos começaram a chover em catadupa (um e-mail) e até já se publicaram «posts» (um post, na verdade) noutros blogs (um blog, na verdade) a exigir pedidos de desculpa formais.

Antes que a coisa assuma proporções mais graves venho por este meio deixar, então, o meu mais sincero pedido de desculpas aos visados e a garantia de que não voltará a repetir-se tamanha desfeita.

Já agora, e só para completar esta primeira troca de intimidades bloguísticas, o «blog» que protestou dá pelo nome de «desumanidades» e passa a constar desde já no menu de «links» esquizóides (e com honras de forte aplauso pela verdadeira pérola literária sobre o Fernando Mendes, o tal que representa «o país do frango e da batata frita»).

quinta-feira, novembro 20, 2003

Kangounatis, o grego

Kangounatis, o grego, não era, na realidade, grego. «Porquê?», perguntavam-lhe insistentemente, sempre que se dignava esclarecer este frequente mal entendido. «Porquê!?!», respondia ele atónito. Indignado, mesmo.

Não era grego, simplesmente isso. Kangounatis, o grego, era português e habitava em Lisboa, onde fixara residência depois de abandonar, aos 19 anos, a povoação de Bombalis, no Togo. Português naturalizado, portanto.

O facto de viver junto à costa Ocidental africana inspirou-lhe desde tenra idade o sonho de rumar à Europa. Passava horas, dias por vezes, a fio frente ao mar, de cócoras ou fazendo o pino, na areia molhada, sonhando, alimentando o imaginário de uma viagem heróica rumo a um novo mundo, cruzando o oceano de espada em riste.

Depois de muito pensar, Kangounatis, o grego, decidiu repentinamente, numa bela manhã de céu azul em que os pássaros copulavam freneticamente pelos ares, rasgando o horizonte com sucessivos vôos acrobáticos, Kangounatis, o grego, decidiu, dizia, meter mãos à obra e dar início à empreitada que acabaria por trazê-lo até ao Cais do Sodré.

Foi dura a viagem. Dura como todas as épicas odisseias marítimas empreendidas pelo Homem. Mais dura, quiçá, que todas as restantes, pois esta foi feita de gaivota, com cada pedalada a equivaler a esforçadas gotas de crença e suor, exponenciadas de forma desumana pelo sol intenso que o acompanhou dia e noite durante a viagem. Dia e noite, repito. Um estranho fenómeno que ainda hoje Kangounatis, o grego, não conseguiu assimilar.

Cento e oitenta e quatro dias depois de ter dado a primeira pedalada rumo a Portugal, ainda no quintal de sua casa, Kangounatis, o grego, entrou calmamente pelo estuário do Tejo, pedalando já com os coutos que lhe restavam, pela altura dos joelhos. Deslumbrado com a paisagem que avistava, puxou do charuto que trouxera carinhosamente aninhado no sovaco e sorveu umas valentes fumaças, recostado no incómodo assento de plástico da sua embarcação.

Finda a viagem, acostou no Cais de Sodré, e içou-se até terra firme. Sentia-se um homem realizado, finalmente completo com esta façanha. Ironicamente completo, tendo em conta que perdera parte considerável das pernas a pedalar. Mas interiormente realizado. Isso sim era importante, pensou para com os seus botões, enquanto enchia o peito de ar em movimentos lentos e ritmados, inspirando de forma alarve a brisa que soprava do Tejo.

Foi precisamente nesse instante que, num rasgo de inspiração, decidiu que o nome de Vitó já não lhe servia. «Sou, oficialmente, um aventureiro e tenho pela frente uma nova vida. A partir de hoje serei Kangounatis, o grego!», exclamou, num grito de fúria incontida e exalando um tremendo bafo a mortadela. Ele, não a fúria.

E assim foi. Sem que alguém tenha o que quer que seja a ver com isso. Simplesmente Kangounatis, o grego. Português, por sinal.

segunda-feira, novembro 10, 2003

Butêncio

Quatro anos depois de ter atropelado uma gaivota, Butêncio chegou à conclusão de que não era digno de existir. Após todo este tempo, nunca conseguira esquecer o pobre animal que se desfizera no pára choques do seu Renault 5.

Desde o dia do triste incidente, costumava ter o mesmo pesadelo todas as noites. Sonhava ser perseguido por um hipopótamo com bico de gaivota. O bizarro animal empunhava um rolo de papel higiénico e gritava num tom assustador: “Hás de morrer, vil assassino!”

Todos os dias acordava ensopado em suor e com a boca repleta de penas. Já consultara, inclusive, um psiquiatra, mas a ajuda que este lhe dera fora quase nula. As explicações eram insuficientes. Sobretudo no que diz respeito às penas que lhe enchiam a boca todas as manhãs. O médico insistia na forte probabilidade de o seu cliente comer a almofada durante a noite. Mas isso era falso! Depois da cura que fizera aos treze anos, Butêncio nunca mais comera almofadas. Ainda por cima, as penas repugnavam-no. Sempre preferira comer almofadas de esponja.

Numa fase da sua vida, como forma de redenção, Butêncio tentou viver como uma gaivota. Mas logo desistiu. Quando, tentando voar, se atirou do terceiro andar do seu prédio e fracturou as duas pernas, chegou à conclusão de que não seria esta a melhor forma de ultrapassar o estigma.

A vida começava, no entanto, e pouco a pouco, a deixar de fazer sentido… Nem as horas que passava junto ao rio, alimentando as gaivotas, o faziam sentir-se melhor. Antes pelo contrário. Chegou a apanhar uma valente gripe que o deixou de cama durante largos meses.

Foi nessa altura que, após profunda reflexão, resolveu pôr termo à sua vida inócua. Mas teria de fazê-lo bem: da mesma forma que a gaivota morrera! Depois de tentar convencer várias pessoas a atropelá-lo com o seu Renault 5, e perante a recusa de todas elas, decidiu ir para a Avenida da Liberdade, atirar-se para baixo do primeiro carro, igual ao seu, que por lá passasse.

Como era um perfeccionista, ficou seis dias sentado na berma da estrada, à espera de um modelo igual e da mesma cor. Quando este, finalmente, apareceu, não pensou duas vezes. Atirou-se para a estrada gritando bem alto: “Perdoa-me, querida gaivota!”. Mas… o carro virou à esquerda, num cruzamento. Desolado, resolveu abandonar a via, mas não conseguiu fazê-lo atempadamente. Foi abalroado por um camião TIR, que o arrastou até à Praça dos Restauradores, onde finalmente o deixou, completamente desfeito. Mas não morreu…

Foi internado. Esteve três anos em coma profundo e… conseguiu sobreviver. Só que nunca mais foi o mesmo. Sobretudo porque ficou com um dos braços na testa. Ficou de tal forma perturbado com o sucedido que já nem se lembrava de quem era. Ao longo de duas semanas, convenceu-se de que era um rabanete. Somente após ter sido expulso por seis vezes do “buffet” de saladas da cantina do hospital, onde insistia em rebolar-se na maionese, abandonou a ideia.

No dia em que deixou a unidade hospitalar foi procurar um novo rumo. Mas era difícil ser aceite pela sociedade. Porque não sabia quem era. Porque não sabia o que queria fazer da vida. Mas, sobretudo, porque tinha um braço na testa.

A partir daí, começou a ser marginalizado. Toda a gente o olhava de lado. Era alvo de chacota nas ruas. Nada fazia sentido. Resolveu, por isso, fechar-se em casa. Isolou-se do mundo. Tentou escrever as suas memórias, mas já não se lembrava de como escrever. E, para além disso, o braço na testa, não tornava a escrita muito cómoda.

Butêncio decidiu, então, juntar-se a uma companhia circense que o acolheu de braços abertos. Acabou, no entanto, por falecer apenas dois dias depois do início desta nova etapa, quando um Zebu que fazia um arriscado número de trapézio caiu em cima dele, esborrachando-o por completo.

Rubrica culinária: receita para uma vida banal

Ingredientes:
1 vida
1 emprego enfadonho
1 chefe intragável
1 dl de salário miserável
Cansaço em pó
Família a gosto
Amigos a gosto
½ litro de jantares de confraternização
Música, cinema, livros e desporto a gosto
1 playstation
Ervas aromáticas de cariz estupefaciente

Preparação:
Corte a sua vida em rodelas finas e coloque-as numa panela, juntamente com o emprego, cortado em gomos relativamente grandes. Deite um fio de salário miserável, tape a panela e coloque a refogar em lume brando. Quando o preparado começar a fumegar – o cheiro a marasmo deverá, por esta altura, fazer-se sentir – adicione o chefe intragável, de preferência picado, e mexa com uma colher de pau.

(Nota: há quem aprecie juntar colegas de trabalho indescritivelmente surreais a este prato. Deixamos essa eventual opção ao critério do «gourmet», ressalvando, no entanto, que tal escolha poderá provocar o intensificar de um paladar já de si bastante azedo ao refogado)

Concluída a primeira fase, terá erguido os pilares essenciais desta refeição: a pseudo-maturidade que advém da responsabilidade do emprego, a angústia do salário que não estica até ao fim do mês, as prioridades completamente invertidas no ritmo de vida e a sensação de completo vazio quando confrontado com as expectativas alimentadas na fase mais juvenil. O principal está feito.

A partir daqui, a confecção do prato terá, em grande parte, mais a ver com o estado de espírito de quem o cozinha e com o âmbito em que a refeição é digerida. Partindo do pressuposto de que a mesma será consumida numa base diária – bem ao jeito ‘McDonalds Espiritual’ – , sugerimos que junte ao refogado os essenciais «pós de cansaço».

Ao fazê-lo, convém retirar a panela do lume e deixar o refogado acalmar, sempre tapado. Mexa devagar, para impedir que o cansaço se acumule no fundo, o que pode suscitar a eventual tendência suicida do cozinheiro.

Quando o cansaço em pó já estiver perfeitamente integrado com os restantes ingredientes – formando um todo bastante compacto – poucas opções lhe restam a não ser refugiar-se nos ingredientes que o ajudam a manter alguma sanidade no prato: família e amigos a gosto. Se puder juntá-los a ½ litro de jantares de confraternização, verá que consegue ocultar ligeiramente a tendência azeda do restante cozinhado.

O prato respirará de outra forma, transmitindo-lhe um paladar mais leve e, acima de tudo, de digestão muito mais fácil. Consoante o ambiente em que esteja, pode acompanhar o repasto com uma de várias sugestões: música, cinema, livros, Playstation e desporto. Obviamente que algumas destas opções são passíveis de degustar em simultâneo. Por isso, mais uma vez, e realçando o facto de este ser um prato de carácter bastante intimista, a decisão ficará ao critério de quem cozinha.

Por fim, e para que as sensações e angústias provocadas por esta refeição possam parecer (realço o PARECER) bastante mais fáceis de assimilar, sugerimos que antes de servir o cozinhado o tempere com as ervas aromáticas de cariz estupefaciente. Depois de fazê-lo, sentir-se-á com capacidade suficiente para comer várias doses de seguida, como se de simples bombons se tratassem.

Com a particularidade de abrirem o apetite, tais especiarias ainda têm o condão de elevá-lo a um patamar de alheamento praticamente «zen», motivo pelo qual tudo passa a ser consumido com um sorriso nos lábios. O sono, esse, torna-se igualmente mais confortável e descansado, permitindo uma digestão perfeita de tudo o que engoliu. O que assume carácter de particular importância, sobretudo se levar em linha de conta que no dia seguinte terá, seguramente, de levar com dose idêntica.

Bom apetite!

sábado, novembro 08, 2003

O Sapato

Andando pelas ruas de Lisboa, encontrei um sapato encostado a uma árvore. Não lhe dei muita importância porque estava atarefado. Tinha de ir ao Banco. Eu, não o sapato.

Não sabia o que lá ia fazer, mas acordei com esta estranha sensação de que deveria ir ao Banco naquela manhã de Terça-feira. Um imperativo de força maior. Ditado sabe Deus por quem. Simplesmente algo me impulsionava em direcção ao Banco.

Continuei o meu trajecto, mas algo no meu interior permaneceu incomodado com aquele sapato. Tinha ficado com a ligeira sensação de que ele me olhara com um sorriso irónico e um brilho provocador nos olhos. Ainda ponderei a possibilidade de o brilho se dever ao facto de o sapato usar óculos mas, no fundo, sabia que algo de anormal se passara.

Esqueci por instantes o sucedido, pois reparei que, com estas divagações, já tinha passado dois quarteirões para lá do edifício do Banco. Voltei apressadamente para trás e entrei, dirigindo-me imediatamente a uma senhora que palitava os dentes de um colega enquanto atendia os clientes com uma voz meiga e doce.

Quando me aproximei do balcão de atendimento, não conseguindo lembrar-me do que lá tinha ido fazer, só consegui balbuciar: “O sapato não é meu”.

Ao ouvir estas palavras, a jovem funcionária ficou de tal forma nervosa que se descontrolou e enfiou o palito no olho do colega. Este atirou-se de imediato para o chão. O pobre homem rebolava, gemendo de dor e sangrando abundantemente pelos ouvidos.

Mas ninguém reparava…
Todos continuavam o seu trabalho rotineiro, como se absolutamente nada de estranho se passasse. Só a rapariga a que me havia dirigido parecia ligeiramente perturbada, olhando fixamente para o ar condicionando, babando-se enquanto desenhava malmequeres, de forma violenta, na capa dos dossiers que se acumulavam na sua secretária.

Este quadro surrealista fez-me desejar fugir daquele sítio. Definitivamente, algo de estranho se estava a passar. Para que ninguém me reconhecesse ou tentasse seguir, resolvi abandonar o edifício agindo com se fosse uma máquina registadora e sapateando sempre que um segurança olhava para mim. Depois de desviar as atenções, parti em busca do sapato, certo de que nele estaria qualquer eventual pista para transmitir alguma lógica ao sucedido.

Quando o encontrei, cumprimentei-o, mas ele, fingindo não me ouvir, olhava fixamente para o horizonte, sem me dar qualquer tipo de resposta. Desconfiei que se tratava de obra de Satanás. Aquele sapato era a reencarnação do Diabo. Só podia ser isso!

Comecei, então, a rezar em voz alta, alertando as pessoas para o facto. Mas como ninguém me ouvia, e o sapato continuava a olhar para mim com um esgar irónico, resolvi engoli-lo. Sem mastigar… todo de uma vez!

Foi nessa altura que me enfiaram numa camisa de forças, trancaram-me numa ambulância e trouxeram-me para aqui. A partir daí, não me lembro de mais nada, Sr. Doutor.

quinta-feira, novembro 06, 2003

Jerónimo

Jerónimo tinha um coração a pilhas mas era feliz. Nem o facto de ter dois olhos de vidro o desgostava, pois encarava a vida de uma forma muito própria. A cara rude e cheia de cicatrizes demonstrava o quão recheados eram os seus dias. Vivia sempre no limite…

Era com imensa alegria que tentava olhar para os seus dois filhos gémeos, que haviam nascido siameses, colados pelo nariz. Mas isso já fazia parte do passado… Depois da operação a que se sujeitaram ainda crianças, em Estocolmo, ficaram definitivamente separados. E não fora o facto de, actualmente, as suas caras parecerem um prato de grão com bróculos, ninguém se lembraria de como nasceram.

A vida corria tão bem a Jerónimo que este chegava, inclusive, a sentir-se mal pela generosidade de Deus para consigo. Chegou a comentar isso, certa noite, com um estranho que com ele se cruzou na rua. Aproveitou para falar um pouco, coisa que raramente fazia. Não só pelo facto de ter graves perturbações na fala, mas sobretudo por não ter qualquer amigo.

O isolamento que essa situação lhe provocava, se bem que não o angustiasse, levara-o, após ficar viúvo, a comprar um texugo para lhe fazer companhia. Deu-lhe o nome de Paulinho. Durante meses, tentou domesticar o estranho animal de estimação. Mas foi um esforço em vão… O bicho escondia-se em todos os recantos da casa demonstrando dessa forma o seu desagrado pela repelente presença de Jerónimo.

Até que desapareceu. Foram de desespero os dias que se seguiram ao desaparecimento do animal. Jerónimo procurou-o até à exaustão em todos os recantos da barraca que habitava, mas não o conseguiu encontrar. Ficou inconsolável. Tal situação levou a que ss seus dois filhos resolvessem visitá-lo e foi nesse dia que descobriram o texugo enforcado na tubagem do autoclismo.

O choque foi tal que Jerónimo perdeu a vontade de viver… Pela primeira vez sentiu na pele o verdadeiro significado da palavra dor. Sofreu em silêncio, ignorando as palavras de conforto dos seus filhos. Era surdo.

Certa manhã, porém, resolveu encarar novamente a vida de frente e deu novo rumo à sua conturbada existência. Emigrou para o Azerbaijão, onde se empregou numa ervanária, acabando por apaixonar-se pelo único cliente do estabelecimento, um canalizador reformado de nome Zack.

Casou e… voltou a ser feliz, até ao dia em que decobriu que Zack era um homem. Amargurado, decidiu, então, abandonar a vida social activa e refugiou-se numa montanha com o intuito de dedicar-se de corpo e alma à prática da meditação espiritual.
Nunca mais deu sinais de vida.

quarta-feira, novembro 05, 2003

Maria

Maria estava a ressacar!…
Havia já duas horas que ela esperava, angustiada, pela dose diária que Afonso, seu namorado, ficara de lhe trazer. Desalentada pelo ardor do desejo e pela frustração de não satisfazer a sua auto-destruição, Maria sentia um tremor invadir o seu ser.

Começou a ter visões… Imaginava-se perseguida por uma omolete gigante. Amedrontada, corria sem saber para onde. A omolete, com cerca de 5 metros de diâmetro, urrava assustadoramente, mostrando os seus dentes feitos de queijo e fiambre… Sim!!! Era uma omolete mista!!!
Maria não parava de correr, mas a dúvida despertava no seu íntimo… Que tamanho teria a frigideira que concebera tamanha omolete?

Sem tempo para procurar uma resposta, Maria entrou pela «Floresta Louca» dentro, em busca de um esconderijo. Foi então que um repolho, mascarado de polícia sinaleiro, lhe disse: “Rápido!… Esconde-te atrás da árvore sem tronco!”.

Maria obedeceu… e como a àrvore não tinha tronco, a omolete descobriu-a e devorou-a!

Moral da história: “Nunca dês ouvidos a um repolho”.

Inácio, o pintor

Nos seus tempos de juventude Inácio sonhara ser pintor. Nunca o conseguiu. O sonho, porém, continuava a dar sinais de vida. De tempos em tempos, tinha verdadeiros ataques de cólera. Revoltava-se por não lhe ter sido possível seguir a sua ambição de infância. O mundo, por vezes, consegue ser deveras cruel…

Acordava frequentemente a meio da noite com os murmúrios da sua esposa, queixando-se das pinceladas imaginárias que ele insistia dar, durante os sonhos, e que acabavam, invariavelmente, com os dedos ásperos de funcionário público enfiados nos olhos da sua amada.

Todas as noites Elise se recriminava por nunca ter dormido com o marido antes de casar. Poderia ter evitado as constantes lesões ópticas e as sitemáticas horas de sono perdido se tivesse antes optado pelo irmão do seu actual esposo. Mas o cheiro a naftalina sempre a incomodara. E o estranho hábito que o seu cunhado ainda hoje mantinha, de mastigar bolas de naftalina como se fossem chicletes, sempre a enojara. “Eu hei de conseguir fazer um balão”, repetia ele vezes sem conta, sem que alguém lhe perguntasse o que quer que fosse.

Com o passar dos anos, o quotidiano de Inácio transformara-se numa rotina enfadonha. Acordava todos os dias angustiado pela dor de não poder concretizar a veia artística que lhe inflamava a alma. Desejava enfrentar uma tela, empunhando um pincel. Transportar para aquele espaço branco, encostado ao cavalete, toda a luz que acumulara no âmago. A fúria que a sua raiva contida e reprimida desejava expandir, chegava a provocar-lhe náuseas. Sobretudo quando comia maionese antes de se deitar.

Vingava-se, por isso, nos formulários que carimbava ao balcão da repartição de finanças em que trabalhava. A fúria com que premia os carimbos contra as dezenas de documentos que lhe passavam pela secretária ecoava por todo o edifício. Desenvolvera, inclusive, técnicas para melhor carimbar. Inventara um mecanismo que, combinando os pedais de uma bicicleta, um cordel, 5 varetas de um guarda chuva e meia dúzia de smarties, lhe permitia carimbar 18 impressos ao mesmo tempo.

Para dar uso à invenção, contudo, obrigava as pessoas a esperar horas intermináveis, até que se juntasse o número de utentes suficiente para utilizar a sua máquina artesanal. Os protestos foram subindo de tal forma de tom, que se viu obrigado a desistir da ideia. Aproveitou e também deixou de comer fritos.

Chegou a consultar psiquiatras e mediums. Também consultou as páginas amarelas em várias ocasiões, mas nenhuma delas relacionada com esta história.
O seu caso era grave. A situação atingira proporções inimagináveis.

Depois de muito chorar nos braços da sua mulher, resolveu encarar a dura realidade e seguir o caminho que sabia ser seu. Era chegada a hora de iluminar a sua vida. Tinha de fazer desaparecer os fantasmas que o perseguiam. No dia seguinte, às 9:00 da manhã, estava à porta do hipermercado do seu bairro. Queria comprar todos os apetrechos necessários para se iniciar no mundo da pintura. A partir daquele dia, o céu seria o limite. Queria sentir a pulsação de um Rembrantd, a inspiração de um Picasso, a loucura criativa de um Van Gogh…

Mas nunca conseguiu… Depois de várias tentativas infrutíferas, o resultado do seu esforço foi um quadro a que deu o nome de “Heidi come um trinau”. Nunca ficou satisfeito com o resultado. Ainda hoje pensa que talvez não fosse sensato desenhar algo que não se conhece. E, sobretudo, que não se consegue explicar. Queimou o quadro. Por descuido, acabou por pegar fogo à casa. Tomou-lhe o gosto e tornou-se pirómano.

Hoje é conhecido como o “Pirómano dos Museus”, temido pelas suas investidas de caixas de fósforos em punho, em direcção às telas expostas em galerias de arte, um pouco por todo o mundo. Mas, acima de tudo, é feliz. E os seus índices de colesterol baixaram consideravelmente desde que deixou de comer fritos.

O Tubo

Era um tubo lindo.
Para o comum dos mortais, poderia ser um tubo como qualquer outro. Mas não. Puro engano. Este tubo era perfeito!

Forte e vigoroso, a sua estrutura de aço conferia-lhe um ar inquebrável, imponente, autoritário. Como se o seu destino fosse uma marcha triunfante, rumo a uma vitória certa numa batalha sem fim. Nada o detinha. O mundo estava a seus pés.

O ar confiante deste tubo era contrabalançado, no entanto, pela beleza do seu brilho. Quando exposto ao sol irradiava alegria. Uma alegria tímida, própria de quem sabe que os estados eufóricos são passageiros. Digna de alguém que sabe ao que veio. Deixando transparecer que, no meio de tanta força, existia uma alma sensata, justa, quem sabe, até, misericordiosa.

Como era esplêndido aquele tubo…

Foi ele que me acertou na cabeça, caído de uma altura de 15 andares, num prédio em construção, algures na Madragoa.
Morri.

terça-feira, novembro 04, 2003

Teste

Os indicadores de confiança económica das famílias portuguesas estão a subir. Por isso criei um blog. Por isso e por muito mais.... Lá iremos...