quinta-feira, fevereiro 26, 2004

«O segredo de Joe Gould»

Isto não vem bem no seguimento do tipo de coisas que aqui costumo escrever mas... que se lixe! Eu sei que vocês perdoam-me.

Sabem aquela sensação de agarrar num livro e devorá-lo, página após página, até ao fim, quase de uma assentada, sem dar sequer pelo passar do tempo? É óptima, não é?

Pois serve este «post» para vos dar conhecimento do facto de ter experimentado essa deliciosa sensação na última madrugada. E o motivo foi a leitura de um «livrinho» tão fascinante quanto surpreendente, intitulado «O segredo do Joe Gould», escrito por Joseph Mitchell.

O relógio já marcava as 6:28 quando finalmente o pousei. Com pena, refira-se, pois mais páginas houvessem para devorar, mais tarde eu teria adormecido.

Obrigado Ivo! E um abraço, já agora!...

Uma surdez peculiar

Ele era surdo. Sofria, aliás, de uma surdez particularmente estranha. Apesar de lhe ter sido diagnosticada, por vários entendidos na matéria, uma surdez total – daquelas com um grau tão intenso que nem o estourar de um foguete a meio metro dos ouvidos lhe ecoava nos tímpanos – um estranho fenómeno fazia com que ele se tivesse tornado num «case study» para os mais renomados otorrinolaringologistas do mundo.

Ele conseguia ouvir perfeitamente a palavra «agrafo». Em condições peculiares, é certo. Mas o facto é que, se alguém se agachasse por trás dele e sussurrasse a palavra «agrafo» com dois dedos enfiados no nariz, ele reagia como se de uma pessoa normal se tratasse. Normal, claro, se nos abstraíssemos do facto de reagir desatando de imediato a bater palmas de forma absurda e a invocar, por escrito, de forma veemente e por vezes até violenta, o direito de acompanhar a migração dos javalis quando bem lhe apetecesse.

O seu caso foi motivo de diversas teses. A sua presença em simpósios internacionais dedicados a matérias de audição passou a ser uma constante. Os seus ouvidos foram alvo de várias operações feitas por equipas de especialistas ávidos de descobrir o porquê de tal ocorrência. Mas o mistério prolongou-se até à sua morte. Jamais foi descoberta a justificação para que aquele homem, aparentemente surdo como uma porta, conseguisse ouvir a palavra «agrafo».

A ele, de resto, tanto lhe fazia, conforme foi explicando serenamente às inúmeras pessoas que o questionaram sobre aquela bizarra situação ao longo da sua vida. «Não me posso queixar», escreveu no seu livro de memórias, «pois há quem ouça menos do que eu».

quinta-feira, fevereiro 19, 2004

Fantásticas e deslumbrantes inovações!!!

Numa perspectiva de acompanhamento das constantes evoluções tecnológicas próprias do novo milénio, o Esquizofrenias de Bolso apresenta aos seus fiéis leitores, a partir de hoje, a possibilidade de participarem em magníficos inquéritos realizados pela nossa redacção com o intuito de sentir o pulsar da sociedade portuguesa no âmbito das mais variadas temáticas.

De hoje em diante, faremos uma actualização semanal destes espectaculares inquéritos que, para além de permitirem que os leitores manifestem de forma categórica as suas opiniões acerca dos assuntos levantados, oferece, ainda, o direito de cada votante a receber um saboroso «Bolicao» com recheio de sabão azul.

Num futuro próximo contamos apresentar outras inovações absolutamente delirantes, entre as quais um magnífico dispositivo que vos permitirá acompanhar a leitura dos estupendos textos aqui publicados com a emissão de deliciosas melodias assobiadas pelos ouvidos do nosso editor.

Fique atento!

quarta-feira, fevereiro 11, 2004

O caixote

Naquele dia, e para estupefacção de toda a família, Firmino irrompeu pela casa dentro transportando um caixote enorme. Vazio, de papelão, o caixote aparentava ser um daqueles tradicionais invólucros de frigoríficos, habitualmente utilizados pelos sem-abrigo para se resguardarem do frio durante as noites em que dormem ao relento.

O barulho ensurdecedor que Firmino fez pelo corredor fora, após a sua entrada em casa com tão estranho objecto, chamou a atenção da restante família. O curto trajecto de seis metros entre a porta de entrada e a porta da sala, foi acompanhado pelo estridente barulho de móveis a arrastar com os encontrões que Firmino lhes ia dando, bibelots a caírem e a estilhaçarem-se no chão, o ladrar do cão, assustado perante tão inusitado acontecimento...

Quando parou pela primeira vez, reparou nas quatro cabeças dos restantes habitantes da casa, espreitando pela ombreira das portas das várias divisões da casa, intrigados com aquele cenário: a sua esposa a espreitar pela porta da cozinha, os dois filhos à porta da sala, a sua sogra no quarto ao fundo, com uma lanterna acesa em direcção à própria cara e com a luz intermitente a dar o ritmo aos seus passos de «moonwalk» feitos de forma perfeita e acompanhados pelo movimento ondulante do andarilho.

Durante uma fracção de segundos, todos pararam, entreolhando-se. Firmino arfava, demonstrando de forma evidente o cansaço provocado pelo transporte do caixote. A restante família, incrédula, fixava-o de boca aberta, como que à espera de uma explicação para aquele espectáculo. A sogra acompanhava o acto de estar boquiaberta com uma magnífica demonstração de falta de controla salivar, deixando escorrer um fio de baba pelo queixo, enquanto se ia arrastando devagar - e com a cabeça cada vez mais inclinada para o seu lado esquerdo - para perto do seu genro.

A pergunta parecia óbvia, mas por qualquer desconhecida razão, ninguém foi capaz de fazê-la em voz alta. Firmino pegou, por isso, novamente no caixote e prosseguiu a sua caminhada até à sala, fazendo passar com visível dificuldade o monstruoso pedaço de cartão pela porta, até o instalar bem em frente à televisão. Todos o seguiram, inclusive o cão, que deixara de ladrar e passara a acompanhar todos os movimentos do seu dono com um misto de curiosidade e felicidade, cheirando o caixote enquanto abanava o rabo com notável veemência.

Instalado o caixote em frente à televisão, Firmino começou a compô-lo, ajeitando-o de forma minuciosa, como se de um novo móvel se tratasse. Os filhos, pequenos, olhavam ora para o pai, ora para a mãe, procurando uma justificação que os ajudasse a perceber um pouco melhor o que se estava a passar. A sogra, cada vez mais inclinada para o seu lado esquerdo, já caminhava apoiada apenas no andarilho, fazendo levitar o resto do corpo de forma absolutamente fantástica.

Ajeitado o caixote, o homem dirigiu-se à cozinha, onde permaneceu durante alguns segundos, até regressar com um pano do pó e uma embalagem de «Pronto». Quando reentrou na sala, a esposa espreitava para o interior do caixote, intrigada, enquanto os miúdos sussurravam qualquer coisa que não conseguiu perceber. A sogra, essa, tentava a todo o custo entrar na sala, mas o facto de ter o corpo na horizontal fazia com que embatesse nas ombreiras da porta e não conseguisse entrar naquela divisão.

Com um desdém a roçar o indelicado, Firmino afastou a mulher do caixote e borrifou-o com um valente esguicho de «Pronto», começando de imediato a esfregá-lo com o pano do pó, num afã inusitado de limpeza que, para além de ser quase contra-natura na sua personalidade, assumia contornos totalmente descabidos para quem, estando de fora a contemplar tal cena, reparava que o caixote, tamanha era a sujidade acumulada, só poderia ter sido retirado de um qualquer contentor do lixo escassos minutos antes.

Nessa altura, a mulher não se conteve e questionou-o: «O que é que se passa?!». A resposta que teve foi um mero olhar gelado, acompanhado por um ameaçador franzir de sobrolho que transmitiu com a maior clareza possível o enfado que o invadiu ao ser confrontado com tão impertinente questão. Prosseguiu com a limpeza e esboçou um sorriso ao olhar pelo canto do olho para os seus filhos, que continuavam instalados no sofá, em silêncio, a acompanhar todos os movimentos do pai.

O som seco da queda da sogra à porta da sala, após desequilibrar-se no andarilho, desviou, por momentos, a atenção de todos, excepção feita a Firmino, claro, que continuou a limpar o seu caixote, indiferente ao sofrimento da velha, que uivava o «Zumba na Caneca», de Tonicha, em vários tons de gemidos agonizantes. As crianças correram em auxílio da sua mãe que, com grande dificuldade, conseguiu pôr a velhota novamente de pé, embora esta teimasse em deixar-se cair, invocando que «no chão é que se curte»...

Quando finalmente conseguiram equilibrar a velhota, repararam que Firmino já não se encontrava nas imediações do caixote. Surpreendidos com tão rápido e estranho desaparecimento, ficaram todos em suspenso, e assustaram-se quando o viram, do interior do caixote, assomar-se e acenar um adeus. Os miúdos, alegres, começaram a rir e responderam-lhe de imediato, pensando ter percebido finalmente que todo aquele aparato não passava de mais uma brincadeira do pai. A mulher, por seu turno, continuava a estranhar todas aquelas movimentações e esboçou um aceno que não chegou a completar...

Firmino tapou o caixote, fechou-se lá dentro e dois segundos depois soava um disparo.