quarta-feira, novembro 05, 2003

Inácio, o pintor

Nos seus tempos de juventude Inácio sonhara ser pintor. Nunca o conseguiu. O sonho, porém, continuava a dar sinais de vida. De tempos em tempos, tinha verdadeiros ataques de cólera. Revoltava-se por não lhe ter sido possível seguir a sua ambição de infância. O mundo, por vezes, consegue ser deveras cruel…

Acordava frequentemente a meio da noite com os murmúrios da sua esposa, queixando-se das pinceladas imaginárias que ele insistia dar, durante os sonhos, e que acabavam, invariavelmente, com os dedos ásperos de funcionário público enfiados nos olhos da sua amada.

Todas as noites Elise se recriminava por nunca ter dormido com o marido antes de casar. Poderia ter evitado as constantes lesões ópticas e as sitemáticas horas de sono perdido se tivesse antes optado pelo irmão do seu actual esposo. Mas o cheiro a naftalina sempre a incomodara. E o estranho hábito que o seu cunhado ainda hoje mantinha, de mastigar bolas de naftalina como se fossem chicletes, sempre a enojara. “Eu hei de conseguir fazer um balão”, repetia ele vezes sem conta, sem que alguém lhe perguntasse o que quer que fosse.

Com o passar dos anos, o quotidiano de Inácio transformara-se numa rotina enfadonha. Acordava todos os dias angustiado pela dor de não poder concretizar a veia artística que lhe inflamava a alma. Desejava enfrentar uma tela, empunhando um pincel. Transportar para aquele espaço branco, encostado ao cavalete, toda a luz que acumulara no âmago. A fúria que a sua raiva contida e reprimida desejava expandir, chegava a provocar-lhe náuseas. Sobretudo quando comia maionese antes de se deitar.

Vingava-se, por isso, nos formulários que carimbava ao balcão da repartição de finanças em que trabalhava. A fúria com que premia os carimbos contra as dezenas de documentos que lhe passavam pela secretária ecoava por todo o edifício. Desenvolvera, inclusive, técnicas para melhor carimbar. Inventara um mecanismo que, combinando os pedais de uma bicicleta, um cordel, 5 varetas de um guarda chuva e meia dúzia de smarties, lhe permitia carimbar 18 impressos ao mesmo tempo.

Para dar uso à invenção, contudo, obrigava as pessoas a esperar horas intermináveis, até que se juntasse o número de utentes suficiente para utilizar a sua máquina artesanal. Os protestos foram subindo de tal forma de tom, que se viu obrigado a desistir da ideia. Aproveitou e também deixou de comer fritos.

Chegou a consultar psiquiatras e mediums. Também consultou as páginas amarelas em várias ocasiões, mas nenhuma delas relacionada com esta história.
O seu caso era grave. A situação atingira proporções inimagináveis.

Depois de muito chorar nos braços da sua mulher, resolveu encarar a dura realidade e seguir o caminho que sabia ser seu. Era chegada a hora de iluminar a sua vida. Tinha de fazer desaparecer os fantasmas que o perseguiam. No dia seguinte, às 9:00 da manhã, estava à porta do hipermercado do seu bairro. Queria comprar todos os apetrechos necessários para se iniciar no mundo da pintura. A partir daquele dia, o céu seria o limite. Queria sentir a pulsação de um Rembrantd, a inspiração de um Picasso, a loucura criativa de um Van Gogh…

Mas nunca conseguiu… Depois de várias tentativas infrutíferas, o resultado do seu esforço foi um quadro a que deu o nome de “Heidi come um trinau”. Nunca ficou satisfeito com o resultado. Ainda hoje pensa que talvez não fosse sensato desenhar algo que não se conhece. E, sobretudo, que não se consegue explicar. Queimou o quadro. Por descuido, acabou por pegar fogo à casa. Tomou-lhe o gosto e tornou-se pirómano.

Hoje é conhecido como o “Pirómano dos Museus”, temido pelas suas investidas de caixas de fósforos em punho, em direcção às telas expostas em galerias de arte, um pouco por todo o mundo. Mas, acima de tudo, é feliz. E os seus índices de colesterol baixaram consideravelmente desde que deixou de comer fritos.