quinta-feira, novembro 06, 2003

Jerónimo

Jerónimo tinha um coração a pilhas mas era feliz. Nem o facto de ter dois olhos de vidro o desgostava, pois encarava a vida de uma forma muito própria. A cara rude e cheia de cicatrizes demonstrava o quão recheados eram os seus dias. Vivia sempre no limite…

Era com imensa alegria que tentava olhar para os seus dois filhos gémeos, que haviam nascido siameses, colados pelo nariz. Mas isso já fazia parte do passado… Depois da operação a que se sujeitaram ainda crianças, em Estocolmo, ficaram definitivamente separados. E não fora o facto de, actualmente, as suas caras parecerem um prato de grão com bróculos, ninguém se lembraria de como nasceram.

A vida corria tão bem a Jerónimo que este chegava, inclusive, a sentir-se mal pela generosidade de Deus para consigo. Chegou a comentar isso, certa noite, com um estranho que com ele se cruzou na rua. Aproveitou para falar um pouco, coisa que raramente fazia. Não só pelo facto de ter graves perturbações na fala, mas sobretudo por não ter qualquer amigo.

O isolamento que essa situação lhe provocava, se bem que não o angustiasse, levara-o, após ficar viúvo, a comprar um texugo para lhe fazer companhia. Deu-lhe o nome de Paulinho. Durante meses, tentou domesticar o estranho animal de estimação. Mas foi um esforço em vão… O bicho escondia-se em todos os recantos da casa demonstrando dessa forma o seu desagrado pela repelente presença de Jerónimo.

Até que desapareceu. Foram de desespero os dias que se seguiram ao desaparecimento do animal. Jerónimo procurou-o até à exaustão em todos os recantos da barraca que habitava, mas não o conseguiu encontrar. Ficou inconsolável. Tal situação levou a que ss seus dois filhos resolvessem visitá-lo e foi nesse dia que descobriram o texugo enforcado na tubagem do autoclismo.

O choque foi tal que Jerónimo perdeu a vontade de viver… Pela primeira vez sentiu na pele o verdadeiro significado da palavra dor. Sofreu em silêncio, ignorando as palavras de conforto dos seus filhos. Era surdo.

Certa manhã, porém, resolveu encarar novamente a vida de frente e deu novo rumo à sua conturbada existência. Emigrou para o Azerbaijão, onde se empregou numa ervanária, acabando por apaixonar-se pelo único cliente do estabelecimento, um canalizador reformado de nome Zack.

Casou e… voltou a ser feliz, até ao dia em que decobriu que Zack era um homem. Amargurado, decidiu, então, abandonar a vida social activa e refugiou-se numa montanha com o intuito de dedicar-se de corpo e alma à prática da meditação espiritual.
Nunca mais deu sinais de vida.