sábado, novembro 08, 2003

O Sapato

Andando pelas ruas de Lisboa, encontrei um sapato encostado a uma árvore. Não lhe dei muita importância porque estava atarefado. Tinha de ir ao Banco. Eu, não o sapato.

Não sabia o que lá ia fazer, mas acordei com esta estranha sensação de que deveria ir ao Banco naquela manhã de Terça-feira. Um imperativo de força maior. Ditado sabe Deus por quem. Simplesmente algo me impulsionava em direcção ao Banco.

Continuei o meu trajecto, mas algo no meu interior permaneceu incomodado com aquele sapato. Tinha ficado com a ligeira sensação de que ele me olhara com um sorriso irónico e um brilho provocador nos olhos. Ainda ponderei a possibilidade de o brilho se dever ao facto de o sapato usar óculos mas, no fundo, sabia que algo de anormal se passara.

Esqueci por instantes o sucedido, pois reparei que, com estas divagações, já tinha passado dois quarteirões para lá do edifício do Banco. Voltei apressadamente para trás e entrei, dirigindo-me imediatamente a uma senhora que palitava os dentes de um colega enquanto atendia os clientes com uma voz meiga e doce.

Quando me aproximei do balcão de atendimento, não conseguindo lembrar-me do que lá tinha ido fazer, só consegui balbuciar: “O sapato não é meu”.

Ao ouvir estas palavras, a jovem funcionária ficou de tal forma nervosa que se descontrolou e enfiou o palito no olho do colega. Este atirou-se de imediato para o chão. O pobre homem rebolava, gemendo de dor e sangrando abundantemente pelos ouvidos.

Mas ninguém reparava…
Todos continuavam o seu trabalho rotineiro, como se absolutamente nada de estranho se passasse. Só a rapariga a que me havia dirigido parecia ligeiramente perturbada, olhando fixamente para o ar condicionando, babando-se enquanto desenhava malmequeres, de forma violenta, na capa dos dossiers que se acumulavam na sua secretária.

Este quadro surrealista fez-me desejar fugir daquele sítio. Definitivamente, algo de estranho se estava a passar. Para que ninguém me reconhecesse ou tentasse seguir, resolvi abandonar o edifício agindo com se fosse uma máquina registadora e sapateando sempre que um segurança olhava para mim. Depois de desviar as atenções, parti em busca do sapato, certo de que nele estaria qualquer eventual pista para transmitir alguma lógica ao sucedido.

Quando o encontrei, cumprimentei-o, mas ele, fingindo não me ouvir, olhava fixamente para o horizonte, sem me dar qualquer tipo de resposta. Desconfiei que se tratava de obra de Satanás. Aquele sapato era a reencarnação do Diabo. Só podia ser isso!

Comecei, então, a rezar em voz alta, alertando as pessoas para o facto. Mas como ninguém me ouvia, e o sapato continuava a olhar para mim com um esgar irónico, resolvi engoli-lo. Sem mastigar… todo de uma vez!

Foi nessa altura que me enfiaram numa camisa de forças, trancaram-me numa ambulância e trouxeram-me para aqui. A partir daí, não me lembro de mais nada, Sr. Doutor.