segunda-feira, novembro 10, 2003

Rubrica culinária: receita para uma vida banal

Ingredientes:
1 vida
1 emprego enfadonho
1 chefe intragável
1 dl de salário miserável
Cansaço em pó
Família a gosto
Amigos a gosto
½ litro de jantares de confraternização
Música, cinema, livros e desporto a gosto
1 playstation
Ervas aromáticas de cariz estupefaciente

Preparação:
Corte a sua vida em rodelas finas e coloque-as numa panela, juntamente com o emprego, cortado em gomos relativamente grandes. Deite um fio de salário miserável, tape a panela e coloque a refogar em lume brando. Quando o preparado começar a fumegar – o cheiro a marasmo deverá, por esta altura, fazer-se sentir – adicione o chefe intragável, de preferência picado, e mexa com uma colher de pau.

(Nota: há quem aprecie juntar colegas de trabalho indescritivelmente surreais a este prato. Deixamos essa eventual opção ao critério do «gourmet», ressalvando, no entanto, que tal escolha poderá provocar o intensificar de um paladar já de si bastante azedo ao refogado)

Concluída a primeira fase, terá erguido os pilares essenciais desta refeição: a pseudo-maturidade que advém da responsabilidade do emprego, a angústia do salário que não estica até ao fim do mês, as prioridades completamente invertidas no ritmo de vida e a sensação de completo vazio quando confrontado com as expectativas alimentadas na fase mais juvenil. O principal está feito.

A partir daqui, a confecção do prato terá, em grande parte, mais a ver com o estado de espírito de quem o cozinha e com o âmbito em que a refeição é digerida. Partindo do pressuposto de que a mesma será consumida numa base diária – bem ao jeito ‘McDonalds Espiritual’ – , sugerimos que junte ao refogado os essenciais «pós de cansaço».

Ao fazê-lo, convém retirar a panela do lume e deixar o refogado acalmar, sempre tapado. Mexa devagar, para impedir que o cansaço se acumule no fundo, o que pode suscitar a eventual tendência suicida do cozinheiro.

Quando o cansaço em pó já estiver perfeitamente integrado com os restantes ingredientes – formando um todo bastante compacto – poucas opções lhe restam a não ser refugiar-se nos ingredientes que o ajudam a manter alguma sanidade no prato: família e amigos a gosto. Se puder juntá-los a ½ litro de jantares de confraternização, verá que consegue ocultar ligeiramente a tendência azeda do restante cozinhado.

O prato respirará de outra forma, transmitindo-lhe um paladar mais leve e, acima de tudo, de digestão muito mais fácil. Consoante o ambiente em que esteja, pode acompanhar o repasto com uma de várias sugestões: música, cinema, livros, Playstation e desporto. Obviamente que algumas destas opções são passíveis de degustar em simultâneo. Por isso, mais uma vez, e realçando o facto de este ser um prato de carácter bastante intimista, a decisão ficará ao critério de quem cozinha.

Por fim, e para que as sensações e angústias provocadas por esta refeição possam parecer (realço o PARECER) bastante mais fáceis de assimilar, sugerimos que antes de servir o cozinhado o tempere com as ervas aromáticas de cariz estupefaciente. Depois de fazê-lo, sentir-se-á com capacidade suficiente para comer várias doses de seguida, como se de simples bombons se tratassem.

Com a particularidade de abrirem o apetite, tais especiarias ainda têm o condão de elevá-lo a um patamar de alheamento praticamente «zen», motivo pelo qual tudo passa a ser consumido com um sorriso nos lábios. O sono, esse, torna-se igualmente mais confortável e descansado, permitindo uma digestão perfeita de tudo o que engoliu. O que assume carácter de particular importância, sobretudo se levar em linha de conta que no dia seguinte terá, seguramente, de levar com dose idêntica.

Bom apetite!