quinta-feira, junho 03, 2004

Os dedos dos pés

Naquele dia voltou a não conseguir encontrar os dedos dos pés. Teimosos, escondiam-se no recanto dos sapatos, confortavelmente protegidos pelas peúgas cinzentas esburacadas, refúgio perfeito para dedos de pés irritantemente armados ao pingarelho e com a mania das independências.

Pelos buracos das peúgas, os dedos dos pés espreitavam e deitavam a língua de fora quando ele tentava apanhá-los. «Bleghh!» guinchavam os dedinhos, encolhidos no fundo do sapato, soltando risinhos nervosos enquanto se escapavam sorrateiramente ao seu dono.

Cansado da situação, decidiu tomar medidas drásticas. Com um martelo bateu-lhes as vezes suficientes para deixá-los atordoados. «Já completamente zonzos não podem ir longe», pensou. E assim aconteceu. Descalçou os sapatos e lá estavam eles, todos, dez no total, inertes, ensanguentados, alguns já tortos, quase desfeitos.

Faltava a última etapa para terminar com aquele suplício que andava a atormentá-lo de forma absolutamente inexplicável. Pegou no serrote e cortou-os a todos. «Vejam só quem ri agora, seus inúteis!!», vociferou em direcção ao chão, onde jaziam os dez dedinhos.

Passou a ser muito mais feliz a partir desse dia, com dez silenciosos cotos em vez daqueles insuportáveis dedos.