quinta-feira, fevereiro 26, 2004

Uma surdez peculiar

Ele era surdo. Sofria, aliás, de uma surdez particularmente estranha. Apesar de lhe ter sido diagnosticada, por vários entendidos na matéria, uma surdez total – daquelas com um grau tão intenso que nem o estourar de um foguete a meio metro dos ouvidos lhe ecoava nos tímpanos – um estranho fenómeno fazia com que ele se tivesse tornado num «case study» para os mais renomados otorrinolaringologistas do mundo.

Ele conseguia ouvir perfeitamente a palavra «agrafo». Em condições peculiares, é certo. Mas o facto é que, se alguém se agachasse por trás dele e sussurrasse a palavra «agrafo» com dois dedos enfiados no nariz, ele reagia como se de uma pessoa normal se tratasse. Normal, claro, se nos abstraíssemos do facto de reagir desatando de imediato a bater palmas de forma absurda e a invocar, por escrito, de forma veemente e por vezes até violenta, o direito de acompanhar a migração dos javalis quando bem lhe apetecesse.

O seu caso foi motivo de diversas teses. A sua presença em simpósios internacionais dedicados a matérias de audição passou a ser uma constante. Os seus ouvidos foram alvo de várias operações feitas por equipas de especialistas ávidos de descobrir o porquê de tal ocorrência. Mas o mistério prolongou-se até à sua morte. Jamais foi descoberta a justificação para que aquele homem, aparentemente surdo como uma porta, conseguisse ouvir a palavra «agrafo».

A ele, de resto, tanto lhe fazia, conforme foi explicando serenamente às inúmeras pessoas que o questionaram sobre aquela bizarra situação ao longo da sua vida. «Não me posso queixar», escreveu no seu livro de memórias, «pois há quem ouça menos do que eu».