segunda-feira, dezembro 29, 2003

Um herói pós-moderno

Viveu durante anos convencido de que era um super-herói. Usava uma capa preta debruada a dourado, que combinava na perfeição com a inseparável mascarilha que lhe tapava a cara toda menos a testa e as orelhas.

Era frequente vê-lo a correr pelas ruas do bairro às cabeçadas com tudo o que mexia ou não mexia, precisamente devido ao facto de a mascarilha não lhe permitir ver o que quer que fosse.

Mas nem isso o impedia de saltitar alegremente por todo o lado, desafiando os transeuntes para infindáveis duelos. Imaginariamente infindáveis, na verdade, pois limitavam-se a durar o ínfimo período de tolerância que as pessoas por ele abordadas lhe concediam.

Acabavam, por isso, e de forma invariável, em escassos segundos os duelos pelos quais ele ansiava ardentemente, esbofeteado sem dó nem piedade pelas pessoas interpeladas que, fartas da gritaria estridente e dos insultos infantis, o sovavam brutalmente até o deixarem prostrado no chão.

Mas no mundo imaginário em que vivia, nada nem ninguém o derrubava. Ele era o herói, sempre pronto a combater o crime e os vilões, onde quer que eles se encontrassem. Não havia percalço que o fizesse abandonar a luta pela qual estava disposto, inclusive, a dar a sua vida, se tal fosse necessário.

Envergava a sua capa esvoaçante com tal brio que era escusado pedir-lhe que deixasse tal acessório impertinente em casa, fosse por que motivo fosse. Assim sendo, não foi de estranhar, como calculam, a nota de despedimento que lhe deixaram na secretária no terceiro dia em que se apresentou no emprego que a sua mãe lhe arranjara no escritório de advogados de um primo afastado.

Mas nem isso lhe arrefeceu o ânimo. Antes pelo contrário!... Agora sim, estava totalmente livre para aplicar na totalidade o seu precioso tempo na eterna luta contra o mal. Não havia tempo a perder. Irrompeu pelo escritório do seu suposto chefe e rasgou-lhe na cara a nota de despedimento.

Num só impulso, e perante o ar atónito do chefe, aplicou um golpe de karaté na máquina fotocopiadora, comeu os restos de um pacote de bolachas que estava no balde do lixo, colocou a sua máscara na cara e atirou-se pela janela, num salto majestoso, verdadeiramente digno de um super-herói.

Voou, voou, voou... durante cinco longos segundos, até se estatelar na banca de frutas da mercearia do Zé Coutinho. Ficou amnésico e tetraplégico e a única palavra que conseguiu pronunciar até ao último dia da sua vida foi «besugo». Ninguém sabe porquê.