quinta-feira, novembro 20, 2003

Kangounatis, o grego

Kangounatis, o grego, não era, na realidade, grego. «Porquê?», perguntavam-lhe insistentemente, sempre que se dignava esclarecer este frequente mal entendido. «Porquê!?!», respondia ele atónito. Indignado, mesmo.

Não era grego, simplesmente isso. Kangounatis, o grego, era português e habitava em Lisboa, onde fixara residência depois de abandonar, aos 19 anos, a povoação de Bombalis, no Togo. Português naturalizado, portanto.

O facto de viver junto à costa Ocidental africana inspirou-lhe desde tenra idade o sonho de rumar à Europa. Passava horas, dias por vezes, a fio frente ao mar, de cócoras ou fazendo o pino, na areia molhada, sonhando, alimentando o imaginário de uma viagem heróica rumo a um novo mundo, cruzando o oceano de espada em riste.

Depois de muito pensar, Kangounatis, o grego, decidiu repentinamente, numa bela manhã de céu azul em que os pássaros copulavam freneticamente pelos ares, rasgando o horizonte com sucessivos vôos acrobáticos, Kangounatis, o grego, decidiu, dizia, meter mãos à obra e dar início à empreitada que acabaria por trazê-lo até ao Cais do Sodré.

Foi dura a viagem. Dura como todas as épicas odisseias marítimas empreendidas pelo Homem. Mais dura, quiçá, que todas as restantes, pois esta foi feita de gaivota, com cada pedalada a equivaler a esforçadas gotas de crença e suor, exponenciadas de forma desumana pelo sol intenso que o acompanhou dia e noite durante a viagem. Dia e noite, repito. Um estranho fenómeno que ainda hoje Kangounatis, o grego, não conseguiu assimilar.

Cento e oitenta e quatro dias depois de ter dado a primeira pedalada rumo a Portugal, ainda no quintal de sua casa, Kangounatis, o grego, entrou calmamente pelo estuário do Tejo, pedalando já com os coutos que lhe restavam, pela altura dos joelhos. Deslumbrado com a paisagem que avistava, puxou do charuto que trouxera carinhosamente aninhado no sovaco e sorveu umas valentes fumaças, recostado no incómodo assento de plástico da sua embarcação.

Finda a viagem, acostou no Cais de Sodré, e içou-se até terra firme. Sentia-se um homem realizado, finalmente completo com esta façanha. Ironicamente completo, tendo em conta que perdera parte considerável das pernas a pedalar. Mas interiormente realizado. Isso sim era importante, pensou para com os seus botões, enquanto enchia o peito de ar em movimentos lentos e ritmados, inspirando de forma alarve a brisa que soprava do Tejo.

Foi precisamente nesse instante que, num rasgo de inspiração, decidiu que o nome de Vitó já não lhe servia. «Sou, oficialmente, um aventureiro e tenho pela frente uma nova vida. A partir de hoje serei Kangounatis, o grego!», exclamou, num grito de fúria incontida e exalando um tremendo bafo a mortadela. Ele, não a fúria.

E assim foi. Sem que alguém tenha o que quer que seja a ver com isso. Simplesmente Kangounatis, o grego. Português, por sinal.