segunda-feira, novembro 10, 2003

Butêncio

Quatro anos depois de ter atropelado uma gaivota, Butêncio chegou à conclusão de que não era digno de existir. Após todo este tempo, nunca conseguira esquecer o pobre animal que se desfizera no pára choques do seu Renault 5.

Desde o dia do triste incidente, costumava ter o mesmo pesadelo todas as noites. Sonhava ser perseguido por um hipopótamo com bico de gaivota. O bizarro animal empunhava um rolo de papel higiénico e gritava num tom assustador: “Hás de morrer, vil assassino!”

Todos os dias acordava ensopado em suor e com a boca repleta de penas. Já consultara, inclusive, um psiquiatra, mas a ajuda que este lhe dera fora quase nula. As explicações eram insuficientes. Sobretudo no que diz respeito às penas que lhe enchiam a boca todas as manhãs. O médico insistia na forte probabilidade de o seu cliente comer a almofada durante a noite. Mas isso era falso! Depois da cura que fizera aos treze anos, Butêncio nunca mais comera almofadas. Ainda por cima, as penas repugnavam-no. Sempre preferira comer almofadas de esponja.

Numa fase da sua vida, como forma de redenção, Butêncio tentou viver como uma gaivota. Mas logo desistiu. Quando, tentando voar, se atirou do terceiro andar do seu prédio e fracturou as duas pernas, chegou à conclusão de que não seria esta a melhor forma de ultrapassar o estigma.

A vida começava, no entanto, e pouco a pouco, a deixar de fazer sentido… Nem as horas que passava junto ao rio, alimentando as gaivotas, o faziam sentir-se melhor. Antes pelo contrário. Chegou a apanhar uma valente gripe que o deixou de cama durante largos meses.

Foi nessa altura que, após profunda reflexão, resolveu pôr termo à sua vida inócua. Mas teria de fazê-lo bem: da mesma forma que a gaivota morrera! Depois de tentar convencer várias pessoas a atropelá-lo com o seu Renault 5, e perante a recusa de todas elas, decidiu ir para a Avenida da Liberdade, atirar-se para baixo do primeiro carro, igual ao seu, que por lá passasse.

Como era um perfeccionista, ficou seis dias sentado na berma da estrada, à espera de um modelo igual e da mesma cor. Quando este, finalmente, apareceu, não pensou duas vezes. Atirou-se para a estrada gritando bem alto: “Perdoa-me, querida gaivota!”. Mas… o carro virou à esquerda, num cruzamento. Desolado, resolveu abandonar a via, mas não conseguiu fazê-lo atempadamente. Foi abalroado por um camião TIR, que o arrastou até à Praça dos Restauradores, onde finalmente o deixou, completamente desfeito. Mas não morreu…

Foi internado. Esteve três anos em coma profundo e… conseguiu sobreviver. Só que nunca mais foi o mesmo. Sobretudo porque ficou com um dos braços na testa. Ficou de tal forma perturbado com o sucedido que já nem se lembrava de quem era. Ao longo de duas semanas, convenceu-se de que era um rabanete. Somente após ter sido expulso por seis vezes do “buffet” de saladas da cantina do hospital, onde insistia em rebolar-se na maionese, abandonou a ideia.

No dia em que deixou a unidade hospitalar foi procurar um novo rumo. Mas era difícil ser aceite pela sociedade. Porque não sabia quem era. Porque não sabia o que queria fazer da vida. Mas, sobretudo, porque tinha um braço na testa.

A partir daí, começou a ser marginalizado. Toda a gente o olhava de lado. Era alvo de chacota nas ruas. Nada fazia sentido. Resolveu, por isso, fechar-se em casa. Isolou-se do mundo. Tentou escrever as suas memórias, mas já não se lembrava de como escrever. E, para além disso, o braço na testa, não tornava a escrita muito cómoda.

Butêncio decidiu, então, juntar-se a uma companhia circense que o acolheu de braços abertos. Acabou, no entanto, por falecer apenas dois dias depois do início desta nova etapa, quando um Zebu que fazia um arriscado número de trapézio caiu em cima dele, esborrachando-o por completo.