segunda-feira, dezembro 15, 2003

Ele e ela

Ainda mal passava da meia-noite e já tinham bebido mais de 15 imperiais cada um.

Ele, afogueado pelo desejo sexual que tentava reprimir a cada golada que dava na cerveja, já mal se aguentava no banco, alto, e esforçava-se por manter um periclitante equilíbrio, encostado ao balcão, com o apoio dos cotovelos calejados.

Ela, indiferente aos impulsos reprimidos do homem com que ia conversando, amigo de longa data, já não dizia coisa com coisa, acabando invariavelmente as ocas opiniões que emitia com um redundante «não achas?».

Ele, cansado e sem paciência para se concentrar em conversas que se prolongassem por mais de dois minutos, ligava o piloto automático cerebral no preciso instante em que ele disparava mais um «pá!, é assim...», no início da emissão de mais uma opinião que ele não pedira.

Ela, incansável, teimava em encostar-se a ele, repetindo vezes sem conta: «Estou tão bêbeda que já nem sei o que digo». «Pois não...», pensava ele para com os seus botões, desejando antes estar noutro sítio, com ela, de preferência. Entretidos com qualquer outra coisa que não requeresse a troca de palavras.

«Bebemos mais uma e vamos para a tua casa!», disse ela espontaneamente. O coração dele irrompeu num aceleramento que jamais experimentara. «Ok...», limitou-se a balbuciar, não conseguindo evitar o rubor que lhe preencheu a face, enquanto tentava, em vão, disfarçar a excitação que o invadiu com o rodopio de pensamentos que lhe atravessou a mente naquele preciso instante.

«Rogério!, traz aí mais duas e a conta, se fazes favor!», pediu, solícito, ao empregado do balcão. «Deveria beijá-la já?», pensou para consigo. «Ou antes fazer apenas um carinho... quem sabe. O que lhe irá na cabeça? O que quereria ela dizer com o ‘vamos para a tua casa?’. Será que me vai levar a mal por beijá-la? Ao fim e ao cabo, foi ela quem se propôs ir para minha casa quando mora dois quarteirões ao lado...»

As imperiais chegaram. A conta também. Ele puxou da carteira, de marca, enchendo ligeiramente o peito para acompanhar aquela verdadeira atitude de macho. «Deixa-te estar», disse com um sorriso malandro, ao reparar que ela procurava a mala, encostada ao banco, no chão, com o intuito de pagar a sua parte.

Ela sorriu, conformada, enquanto ele estendia as três notas de dez euros ao empregado. «Então, deixa-me só ir à casa de ba...», gritou ela, não conseguindo acabar a frase. Caiu do banco, fez uma ferida na testa e ficou estendida, inconsciente, no chão do bar, com um fio de sangue a escorrer-lhe pela face.

Ela acabou a noite nas urgências do Hospital de Santa Maria. Ele dormiu, na sala de espera, sentado num incómodo banco de plástico que rangia por todos os lados.

De manhã, já o relógio marcava 10h00, ela entrou na sala de espera, com um sorriso amarelo e a cabeça enfaixada. «Deram-me alta», disse-lhe depois de o acordar. «E sentes-te melhor?», perguntou ele. «Sim... só me dói a cabeça, mas eles disseram que é normal. Não tenho nenhum problema grave...»

Ele deu-lhe boleia até casa. Não falaram durante o trajecto. Despediram-se com dois beijos na cara e um frio «Depois diz qualquer coisa». Nunca mais disseram. E nunca mais se viram.