terça-feira, janeiro 13, 2004

«A ambivalência da soturnidade» - apontamentos para o guião de um filme mítico

Tenho, desde jovem, a secreta ambição de alinhavar um guião que me permita realizar o filme que se constituirá como o passaporte para a minha entrada pela porta grande para o panteão dos grandes mitos da cinematografia mundial.

As ideias, como podem imaginar, abundam, e vão-se acumulando em «post-its» intermináveis, que me preenchem as paredes da casa como se se tratassem de uma qualquer forma de decoração pós-modernista, numa sucessão de pequenos papelinhos amarelos rabiscados, ordenados de forma aparentemente caótica. Repito: a-p-a-r-e-n-t-e-m-e-n-t-e.

O facto é que a «coisa» anda a marinar pela minha cabeça há já um tempo considerável, pelo que achei oportuno, nos últimos dias, dedicar-me a uma intensa reflexão sobre as notas que tenho em mãos. E, depois de um duro processo de escolha, avaliação e ponderação, acabei por conseguir chegar a um esboço que me permite partilhar convosco uma curta sinopse e outras ideias soltas sobre A Ambivalência da soturnidade, aquele que será, sem qualquer espécie de dúvidas, o filme do ano, em meados da década de 30 do Século XXI.

O enredo

Passado algures numa aldeola perdida no interior alentejano, o enredo deste filme centra-se numa teia de amores, ódios, conspirações e lutas pelo poder com consequências devastadoras para a comunidade que a habita. Feita em 50 por cento de nylon e 50 por cento de aço inoxidável, esta teia será responsável, entre outros pormenores de somenos importância, pela amputação de vários braços e pernas dos protagonistas do filme, para além do vazamento do olho da heroína da trama, Lucrécia, numa das dramáticas cenas finais, quando decide fugir com Sputnik para Badajoz.

O clima

Estupidamente quente. Sempre. Curiosamente, a acção desenrola-se invariavelmente entre as 12h30m e as 15h30m de infernais dias de Agosto naquela localidade do interior alentejano. Apesar de ser uma história que atravessa gerações, todos os acontecimentos que constroem este épico filme ocorrem neste peculiar espaço temporal. Ninguém sabe porquê. É uma daquelas questões que fica em suspenso, para futuras discussões acaloradas dos indefectíveis fãs do realizador/argumentista, que alimentarão aprofundadas e obscuras teorias sobre o significado desse facto.

Os figurantes

Num claro golpe de génio, que obviamente só terá o devido reconhecimento por altura do lançamento do filme, decidi apostar somente em quatro figurantes, que aparecerão sempre, em toda e qualquer cena: três homens e uma mulher que, sentados a uma mesa, acompanhados dos respectivos copos de tinto e notoriamente embriagados, disputam animadas partidas de sueca. Um dos homens, de nome Teodósio, sem braços (eventualmente vítima da tal «teia» - mais um tema para profundas e acaloradas divagações intelectuais dos espectadores), equilibra as suas cartas entre o lábio superior e o nariz, fungando violentamente de cada vez que pretende jogar a sua cartada. Uma cena que ficará para a história do cinema é a do funeral de Lucrécia, em que Teodósio – que, obviamente, aparece a jogar à sueca com os seus companheiros de vício, por trás do padre – retira um trunfo escondido da manga com uma memorável fungadela que, entre outras coisas, aspira a tampa do caixão da falecida.

As personagens principais

LUCRÉCIA – Já por várias vezes citada nas anteriores secções, Lucrécia é a alma deste filme. Doce, afável, bonita, com um ar virginal, mas uma voz de putéfia abagaçada que contrabalança com a imagem que apresenta, e deixa antever o coirão que realmente se revela ao longo do filme. Orfã desde tenra idade, Lucrécia começa a vender o corpo aos 15 anos, pelo que quando chega aos 22 já não tem seis dedos, uma orelha, as duas rótulas e uma anca. Dividida entre três paixões avassaladoras, Lucrécia acaba por falecer vítima do próprio amor, quando se pensava ter definitivamente alcançado a paz. O trágico óbito acontece numa intensa relação sexual com Sputnik, na noite de núpcias. Cena essa que, escusado será dizer, vai entrar directamente para o rol de momentos marcantes da História do cinema.

CELSO – O primeiro amor de Lucrécia que, depois de lhe roubar a virgindade, vai para a feira local, onde é apanhado em flagrante delito, a vendê-la à figurante que era suposto estar a jogar à sueca. Preso logo na parte inicial do filme, Celso tenta, ao longo do restante enredo, protagonizar várias fugas da prisão, todas mal sucedidas. Uma delas, que claramente se assume como uma das mais marcantes cenas de fuga do cinema do novo século, é a cena em que Celso tenta fugir pela sanita da sua cela, mas acaba por ser preso pelos guardas, que haviam sido alertados pelo piaçaba.

OCTÁVIO – O merceeiro, dono do estabelecimento em que Lucrécia começa a trabalhar aos 30 anos e onde acaba por travar conhecimento com Sputnik, o amor da sua vida. Octávio tem uma paixão platónica por Lucrécia. Apesar de nunca confessar esse amor, o sentimento é por de mais evidente na forma subtil como apalpa constantemente, de forma alarve, a sua empregada sempre que se cruza com ela nos corredores da mercearia. Uma das cenas que entrará directamente para a História do cinema é a já célebre reposição de latas de ananás em calda na prateleira de cima do expositor da montra da mercearia, e em que Octávio, enquanto segura a escada em Lucrécia se equilibra, lhe mordisca ao de leve as nádegas.

SPUTNIK – Um robô proveniente do planeta Zgunlius que se perde dos seus companheiros de expedição quando estes decidem regressar ao planeta de origem. Uma espécie de E.T., embora mecânico, e com a particularidade de, na sua cabeça metálica de 50 centímetros de diâmetro, usar uma peruca loira e farfalhuda. O facto de apenas proferir guinchos imperceptíveis e de caminhar sobre rodas de pau, não o impede de cativar Lucrécia, quando ambos se conhecem na mercearia de Octávio. A morte da nossa heroína depois da fuga de ambos para Badajoz acaba por dar, no entanto, início a uma trágica sucessão de episódios dramáticos, que culminam na tentativa de suicídio frustrada de Sputnik, que não consegue deixar de sentir-se responsável pela morte de Lucrécia, electrocutada pelo órgão sexual do seu cônjuge no momento da consumação do matrimónio.