quinta-feira, janeiro 08, 2004

A camisola

Por muito estranho que isto vos possa parecer, a minha actual situação profissional tem o condão de fazer-me voltar atrás no tempo com irritante frequência.

O bizarro fenómeno tem uma explicação simples... Da mesma forma que, por vezes, determinados cheiros ou sabores nos reportam a momentos, fases ou acontecimentos do nosso passado, também as palavras, quando ditas de certa forma, podem suscitar o mesmo encadeamento mental, provocando ondas de saudosismo que nos fazem recuar anos e anos no tempo.

Divagações à parte, cinjamo-nos ao que me levou a escrever este «post»: os famosos anúncios das camisolas interiores Termotebe. Quem não se recorda, na nossa infância (nossa para os que, como eu, tenham a felicidade de ainda andar pela casa dos vinte e tais aninhos), daquele marcante anúncio das finas camisolas que, quais obscuros casacos de peles, nos afastavam desse perturbante inimigo que é o frio?

O anúncio, inteligente, apresentava-nos pessoas distintas, confiantes, seguras. Pessoas sem medo do que quer que fosse, porque com elas, bem, com elas o frio - esse cancro da nossa sociedade -, não fazia farinha.

«Frio?!», perguntava, indignada, a criancinha, olhando a câmara bem de frente, antes de disparar a frase lapidar que, dita num só impulso, nos deixava desarmados: «Eu não tenho frio! Uso uma Termotebe e o meu pai também!...». Assim, como se no fundo o que ela realmente quisesse dizer fosse algo do género, «se tens frio é porque és uma besta e o teu pai é uma besta ainda maior».

Eu, por acaso, nunca usei uma Termotebe... Não sei se poderá partir daí qualquer eventual explicação para o porquê de eu ser a pessoa desequilibrada que sou hoje em dia. Mas enfim... Também não foi por esse facto que resolvi escrever isto. Prossigamos, portanto...

Eu, por acaso, nunca usei uma Termotebe. Nem nunca usei nenhuma camisola digna de registo. Até aos dias de hoje!... Dias ricos, estes, em que é com notável orgulho que posso gritar a plenos pulmões: «Até que enfim!, eu visto uma camisola!...».

Sim, amigos... Eu, no meu trabalho, visto uma camisola. Uma camisola de que muito me orgulho. Aliás, reformule-se, para não cair no erro de soar a injustiça: eu visto «a» camisola. O resto é conversa.

Tenho um ordenado miserável, pois tenho! O trabalho que desempenho é enfadonho com’ós cornos, pois é! Sinto-me, por vezes, completamente gozado pelos meus superiores, tendo em conta a relação entre a qualidade do trabalho que produzo e o montante que me é depositado na conta bancária no final de cada mês, pois sinto! Trabalho mais, melhor, com mais brio e com maior profissionalismo que alguns colegas que recebem (bastante) mais do que eu, pois trabalho! Mas...

Mas, nada!... Pois fiquem vocês sabendo que nada disto me afecta! Tomem lá, que é para aprenderem a não retirar conclusões precipitadas das coisas. Nada, mas absolutamente nada!, disto me afecta. Pode parecer cretino da minha parte não me queixar, não esboçar um protesto, não erguer a voz perante o que aparentemente se constituiu como um atropelo à moral de qualquer funcionário de uma empresa. Mas, garanto-vos, a minha resignação nada tem de cretina.

E, neste aspecto, posso dar graças ao facto de ter um chefe que, ele sim, me fez ver a luz, qual messias iluminado, qual representante de Deus na terra, qual líder fundamentalista de uma seita da qual eu seria, sem qualquer hesitação, um convicto bombista. Um bombista em prol de uma mensagem. Um bombista, sim um bombista!, mas um bombista de camisola vestida.

Porque o meu chefe mereceria tamanho sacrifício. O meu chefe, esse líder do além que, perante as minhas modestas ambições, abalou todo o edifício de certezas inequívocas que em grande parte sustentavam a minha existência:

«- Doutor, gostava de falar consigo sobre a minha situação aqui na empresa.
- Oh!, esteja descansado!... Sabe?, estamos muito satisfeitos consigo e com o seu trabalho... É um dos melhores funcionários que temos!
- Pois, sim... mas... sabe?, eu tenho alguma dificuldade em sobreviver com aquilo que me pagam...
- Pois... mas sabe como é, não, sabe?... Isto está mal... a economia, o mundo, as guerras, o 11 de Setembro...
- Mas... o 11 de Setembro já tem mais de dois anos...
- Ah! Não se convença disso. O 11 de Setembro é uma daquelas coisas... como o Natal, como as crises económicas... é quando uma empresa quer...
- Mas... eu trabalho mais do que algumas pessoas que não produzem 1/3 do que eu produzo...
- Pois, mas isso... não há nada a fazer! As coisas são assim.
- Então... quer dizer que não há possibilidade de vir a ser aumentado nos próximos tempos?
- Não. Mas se quer um conselho, não desespere. Essa coisa de querer ser aumentado é normal. Você é jovem, está na altura de lutar pelas utopias... O importante é vestir a camisola.
- Vestir... a camisola?
- Sim, rapaz... não desespere! Vista a camisola deste projecto e vai ver que não se vai arrepender!»

E pronto! Eis-me chegado à razão! Finalmente me apercebo do louco que fui, durante anos a fio, acreditando naquilo que pensava ser o mais normal nas relações de trabalho. Só agora compreendo o quão absurdas eram as minhas aspirações ou o quão ridícula era a minha angústia perante as agruras do malabarismo orçamental que me vejo forçado a fazer todos os meses.

Agora, que já vi a luz, consigo viver a vida com a mesma alegria do menino da Termotebe. Com uma pequena diferença: a camisola dele só combatia o frio. A minha, ah-ah!, a minha combate o frio e muito mais. Ora vejam lá se não tenho razão:

«Cinema?! Eu não posso ir ao cinema, mas visto a camisola e o meu chefe também!»; «Bola?! Eu não posso ir à bola, mas visto a camisola e o meu chefe também!»; «Concertos?! Eu não posso ir a concertos, mas visto a camisola e o meu chefe também!»; «Jantar fora?! Eu não posso jantar fora, mas visto a camisola e o meu chefe também!»; «Viajar?! Eu não posso viajar, mas visto a camisola e o meu chefe também!», e por aí fora, consoante o tema que queiram abordar...

Que cretino que eu era, de facto... Agora sim! Com esta camisola, o céu é o limite!!!...