quinta-feira, janeiro 29, 2004

O menino que gostava de enfiar a cabeça no congelador

Era uma vez um menino que gostava de enfiar a cabeça no congelador. Para desespero dos pais, não havia distracção mínima da sua parte que a criança não aproveitasse para fugir em direcção à cozinha com o intuito de saciar o estranho gosto.

O processo era sempre o mesmo: mal via o caminho livre, esgueirava-se pelo corredor até à cozinha, arrastava, com a dificuldade própria dos meninos de três anos, a cadeira mais próxima até junto do frigorífico, empoleirava-se nela com assinalável ligeireza e, em periclitante equilíbrio no assento, esticava-se até conseguir alcançar o puxador do congelador. Aberta a porta para aquele espaço que se lhe apresentava como uma nova e gelada dimensão, o menino içava-se ao máximo e, com os ‘pézinhos’ já quase a não tocarem na cadeira, enfiava a cabeça alourada no congelador.

Tudo começou quando o menino contava sensivelmente três aninhos, numa manhã de sábado em que a mãe, ao chegar à cozinha após acordar, se deparou com tal cenário. Aflita, apressou-se a puxar o menino para o seu colo, sem perceber bem o que se passara. Com os lábios roxos e a pele esbranquiçada, o menino respondeu com a simplicidade característica dos meninos de três anos, à preocupação da sua mãe. Que fazia ele com a cabeça no congelador? Simples... «Eu góta», respondeu com um sorriso maroto e a bater os dentes, enquanto batia palminhas.

Obviamente preocupada, a mãe decidiu, no entanto, esquecer o sucedido. Mas rapidamente chegou à conclusão de que tal não lhe seria possível. Não só pelo bizarro da situação mas, sobretudo, porque nas semanas seguintes o menino começou a repetir a façanha com preocupante frequência.

Numa primeira fase, pai e mãe, após frustradas tentativas de demover a criança, através de conversas explicativas sobre os inconvenientes de introduzir a cabeça no congelador, começaram a castigá-lo com palmadas. Leves. Porque não eram apologistas dos castigos corporais e, acima de tudo, porque estavam plenamente convictos de que não seria essa a forma de convencê-lo a desistir. E o facto de todas – sim, todas! – as noites acordarem com o barulho do menino a abrir e a fechar a porta do congelador confirmava-o.

O recurso a um psicólogo foi o passo seguinte. Mas, se aparentemente as primeiras semanas deixavam antever que o menino estava a melhorar, pequenos e subtis indícios começaram, aos poucos, a permitir aos pais concluir que o estanho comportamento do seu filho não estava a diminuir de intensidade, mas sim a refinar-se...

De facto, se o barulho da cadeira a arrastar pela cozinha ou o fechar seco da porta do congelador tinham deixado de fazer-se ouvir com tanta assiduidade, a frequência com que o menino aparecia perto deles com couves de Bruxelas enfiadas nos seus fartos caracóis louros, ervilhas nas narinas ou escamas coladas às orelhas, indiciavam que o processo se mantinha, embora de forma mais discreta.

Pior do que isso, contudo, era o psicólogo não conseguir encontrar razões que pudessem estar na base do comportamento do menino ou, sequer, descobrir formas de ajudá-lo a ultrapassar o impulso que o levava a cumprir religiosamente tamanha manifestação de total insanidade. Vigilância permanente, conversas tranquilas e muita paciência, eram as únicas receitas que o médico conseguia dar aos pais. Em vão, porém, se esforçavam eles por que esta metodologia de tratamento tivesse sucesso.

Chegaram ao ponto de desistir, resignando-se ambos perante o facto de terem um filho que, mais do que brincar, jogar à bola, ver televisão ou desenhar, gostava, isso sim, de enfiar a cabeça no congelador. E assim foram prosseguindo as suas vidas, até ao dia em que, com a mesma simplicidade e falta de explicação com que tudo teve início, o menino pura e simplesmente desistiu...

Tinha ele seis anos e entrara há alguns meses para a escola primária, quando se apaixonou por uma menina da sua classe, que dava pelo nome de Marlene. Após algumas semanas de palpitações sempre que via a Marlene passar, o menino encheu-se de coragem e abeirou-se dela num intervalo. Aproximou-se, estendeu os lábios e procurou a face da menina, para lhe dar um beijinho. Ela, surpreendentemente calma e aparentando já estar à espera da iniciativa do menino, limitou-se a desviar subtilmente a cara, como que fintando devagarinho o beijo que o menino tanto desejava pudesse selar aquela coisa que ele sentia e que julgava ser o amor de que os grandes falavam.

Um pouco embaraçado com a situação, o menino hesitou por momentos... Apetecia-lhe fugir, tamanha era a vergonha que sentia mas, ainda assim, respirou fundo e, com a face ruborizada, perguntou-lhe: «Não gostas de mim?», disse, quase gaguejando. «Gosto», respondeu ela, convicta e com um sorriso a encher-lhe a cara e a deixar espreitar o vistoso aparelho que servia de adereço aos dentes. O menino, surpreendido mas ao mesmo tempo alegre com a resposta, esbugalhou os olhos e insistiu: «Então porque não quiseste o meu beijinho?». «Porque tu cheiras a douradinhos e disso eu não gosto», respondeu ela escondendo a cara com as mãos em sinal de vergonha.

E a partir desse dia, o menino nunca mais voltou a enfiar a cabeça no congelador...