quinta-feira, outubro 14, 2004

A mão - uma peça em três actos

Acto I

Cenário: Baixa de Lisboa;
Personagens: bastantes;
Figurantes: umas largas centenas;

É noite cerrada em Lisboa. A cidade dorme, sob o manto da escuridão entrecortada por breves e tímidos tons de laranja emanados por candeeiros de rua que sussurram bocejos, esperando impacientemente a sua hora de terminar o serviço e também descansar o sono dos justos.

A neblina que se faz sentir naquela noite de Agosto não deixa vislumbrar as estrelas que cintilam ao fundo, no céu. A lua, essa, já ninguém se lembra dela. Desapareceu em meados de Março, num fenómeno que a ciência ainda não conseguiu explicar.

O silêncio que se faz notar de forma particularmente solene naquela noite de Agosto está, no entanto, prestes a ser quebrado. Um clarão imenso, branco, quase capaz de cegar ? se tal lhe aprouvesse ? qualquer ser que ousasse enfrentá-lo, ilumina os céus, antecipando o estrondo assustador que se lhe seguiria.

«Brrrrummm!!!», ecoa por todo o lado.

Subitamente, uma mão irrompe dos céus. Enorme. Com uma aura em jeito de luva transparente, deixa um misterioso rasto atrás de si, conferindo aos seus movimentos uma delicadeza que a todos espanta por crerem não ser possível articular quaisquer acções com tamanha harmonia. A determinada altura, a mão pára e pelos céus ecoa o ribombar de tambores sabe-se lá vindos de onde.

Depois de um verdadeiro solo celestial de batucada, o som dos tambores culmina num potente «Zás» que serve de banda sonora ao esticar do dedo indicador da mão em direcção às pessoas que, por esta altura, já espreitam pelas janelas. O horror espalha-se célere pela cidade. Gritos recrudescem por todo o lado, num crescendo de pavor incontrolável. Os tambores voltam a ribombar de forma cada vez mais ensandecida. Instala-se a loucura.

- «A mão!, a mão!», berra-se por todo o lado.

- «Fujam! É o fim do mundo!, fujam!», grita-se em cólera pelos corredores dos prédios.

- «Ai, caralho!», geme o senhor Ernesto ao aperceber-se que, na confusão, deixara cair uma das chinelas para o esgoto.

O medo que aflige as pessoas leva a que algumas optem por saltar pelas janelas das casas em busca da salvação. Uma família de chineses salta pela janela do rés-do-chão de um prédio na Mouraria. Xi Leng Soo, desloca um pulso nesse salto e fica extremamente aborrecido. Sobretudo porque para além de chinês só fala hebraico e não consegue fazer-se entender nas urgências do Hospital de São José. Acabam por rapar-lhe as sobrancelhas.

Indiferente ao pandemónio que a sua surpreendente aparição gera pela cidade, a mão continua a descer dos céus, num ritmo simultaneamente calmo e cadenciado, agora de dedo indicador em riste. Sustém a marcha descendente a cerca de 3,37 metros do chão, quando se apercebe da intervenção policial que, lesta, intervém para restaurar a ordem publica.

- «Ora bem!... Toca a calar a merda dos bombos!!», ordena o subintendente Fernando, polícia de serviço que faz a ronda no Rossio.

Visivelmente chateado com o disparate da cena, começa a descarregar a sua raiva, de cassetete em punho, sovando indiscriminadamente as pobres pessoas que passam a seu lado, fugindo sem saber para onde, na busca de um refúgio que as proteja daquela ameaçadora mão.

Subitamente, surgem dezenas de indianos pelas ruas, munidos de skates, trotinetes e patins em linha.

- «É cinco euros! Pra fugir da mão!!! É só cinco euros!!».

Um deles é estupidamente estrábico e teima em impingir um par de patins em linha a uma cabine telefónica. Faz o negócio da noite. Vende quatro pares ao preço de três.

Ao aperceber-se da repressão policial, a mão indigna-se e catapulta o subintendente Fernando para lá do Castelo de São Jorge com um carolo de técnica aguçada. As pessoas apercebem-se da situação e a loucura começa a ser invadida por suaves ondas de acalmia, até chegar ao limite da paralisação, com todas as cabeças direccionadas para a mão, que voltava à sua pose inicial, embora já não com o dedo em riste.

As pessoas voltam-se aos poucos para a mão, que se reaproxima delicadamente, num claro tom de pacificação, e começa a esboçar gestos aparentando querer articular uma qualquer forma de comunicação. Repete os gestos duas, três vezes, começa a fazê-los uma quinta vez, quando uma voz grossa soa do fundo de uma multidão que se aglomerara frente aos chilenos que tocavam ao lado do McDonalds.

- «É linguagem gestual! Eu sei porque sou surdo! É linguagem gestual!!!»,

começou a gritar o personagem, Vítor Cláudio de seu nome, com cerca de 35 anos, tatuagem no braço direito, camisa de flanela aberta, t-shirt branca com estampa de uma qualquer cidade estrangeira cuja localização não sabe indicar no mapa. Óculo escuro à «cobra», também de palito na boca, cabelo igualmente seboso, mas com a evidente mais valia da bigodaça espetadiça e nitidamente mal aparada.

A mão estica-se, abrindo os dedos num sinal de alegria incontida por ter conseguido fazer-se entender. Repete novamente os gestos, mais rapidamente e com alguns solavancos de excitação. Vítor Cláudio repete, já com repiques de grunhice na pronunciação,

- «É linguagem gestual! É linguagem gestual! Eu sou surdo!!!».

A mão acelera os movimentos, as pessoas que já decoraram os gestos repetem-nos em direcção a Vítor Cláudio. Ele, indiferente à excitação crescente que se gera em seu redor, corre desalmadamente em círculos à volta da estátua de D.Pedro IV.

De repente pára e geme um comovente «eu sou surdo...», com um acabrunhado encolher de ombros.

(Silêncio total. Fade de luzes para um breu de arrepiar a espinha. Um foco de iluminação surge vindo do além e centra-se na figura de Vítor Cláudio, que aparece agora vestido de fraque azul bébé. Mas com as mangas arregaçadas e brilhantina nas orelhas. As pessoas afastam-se dele e uma plataforma em jeito de palco eleva-se cerca de 2,22 metros do chão. Vítor Cláudio executa um solo vocal de 2m37s ? suspeita-se que em playback, pois a voz que realmente se ouve é a de uma mulher gaga ? , culminando a sua performance com uma sessão de raters na Harley Davidson que surge no palco.)

O público delira e clama por Vitócas, o herói do povo! O surdo que percebe a mão!, esse homem que todos pode salvar. Ele, humilde agradece, retribui os aplausos e desce da sua plataforma com um salto encarpado para a calçada. Bate com a testa numa pedra falhada e abre a cabeça. Morre.

É o desânimo. Soltam-se os primeiros soluços, breves, quase instantaneamente dando lugar ao choro convulsivo. Depressa a baixa de Lisboa se transforma numa sessão de total e partilhada libertação de angústia, abandono e desespero. Através do choro, do gemido, do uivo, do grito, dos cânticos das claques que rapidamente acorrem ao local. Um verdadeiro espírito de catarse apodera-se do povo que surpreendentemente já está todo de luto. É uma nação em plena experiência de dor profunda, entregue ao seu triste fado.

- «E a mão?!», grita expedita a senhora Aurélia olhando para os céus do fundo das lentes dos óculos com 2 centímetros de espessura.

Gera-se um burburinho imediato. As cabeças circulam, trocando olhares cúmplices entre si e ávidas espreitadelas para o céu, com a incredulidade estampada no rosto e como que à espera de permissão para a explosão de alegria que se adivinha.

- «A mão foi-se embora!!!», grita alguém!,

- «A mão foi-se embora!!!», grita-se por todo o lado.

- «AhAH!»

- «UIHHHHH!!!»

Pela cidade ecoam os mais estranhos gritos de felicidade, todos traduzindo, no fundo, a mesma proporção de alegria por ver finalmente evaporar-se a sombra do pesadelo apocalíptico que se haviam visto forçados a viver. A mão fugira. A mão deixara de ser uma ameaça.

Abraços e saudações entre a multidão. O sentimento de dever cumprido reflecte-se na partilhada convicção de que o povo conseguiu funcionar como um só para batalhar contra a maldição que sobre eles quase se abatera.

- «É assim mesmo que deve ser», comenta-se entre uns couratos e uma minis partilhadas no snack bar Felicidade II, aberto especialmente às 5h00m para os festejos que espontaneamente se alastraram a toda a cidade.

O povo celebra pelas ruas. Há manjericos, churros, balões, bandeiras de Portugal, pequenos, graúdos, algodão doce, cerveja, um coxo, homens-estátua, mimos, abraços, paz, harmonia, felicidade, sardinha a três euros. Magia, meus senhores e minhas senhoras, a magia do momento flutuava pelo ar.

O dia começa a amanhecer e a multidão lentamente dispersa-se, rumando aos magotes para as respectivas casas. Zé Luís engana-se e vai dormir para uma casa que não é dele, mas onde o deixam entrar sob a condição de não comer os atoalhados. Em pouco mais de meia hora, as ruas ficam desertas. A praça do Rossio volta apenas a ser habitada por pombos.

Da esquina da Rua Augusta surge, vagarosamente, arrastando o andar e segurando um dos braços ao peito, o subintendente Fernando. Olha tranquilamente em seu redor enquanto irrompe no seu passo lento pela praça do Rossio, respira fundo, aproxima-se da estátua, encosta-se devagar ao mármore frio e suspira

- «É assim calminho que eu gosto...»

Desce o pano.

Fim do Acto I.