terça-feira, março 09, 2004

Uma vida infeliz

Era uma vez um pêssego que queria muito ser uma mochila. A ambição era tal que, perante a manifesta incapacidade de alcançar os seus propósitos, o pobre fruto passava os dias a choramingar pelos cantos da casa.

Certo dia, e confrontado com a permanente angústia do filhote, o pai do pêssego, um formoso alguidar que ganhava a vida como actor de telenovelas mexicanas, resolveu falar com o jovem fruto.

«Meu filho», disse o pai, «bem sabes que a vida não é fácil, nem justa!... Lembras-te da tua mãe? Pois é... Bem sei que eras muito jovem quando ela nos deixou, mas garanto-te que era uma das mais bonitas máquinas de costura que Deus já havia posto na Terra. Até que um dia, quando fugia de um cão enlouquecido por uma picada de rouxinol, foi atropelada por um comboio que descarrilara há quatro dias...».

Emocionado, o jovem pêssego retorquiu: «Mas meu pai... Lembra-se de quando eu era apenas um pequeno caroço? Nesses tempos, tudo o que eu queria era ter um sofá para poder fazer bolos!».

Perante tão eloquente argumento, o pai abraçou o filho, não conteve as lágrimas e chorou...

quinta-feira, março 04, 2004

Um passeio na feira

Depois de muito teimar, acabou por aceder a ir à feira com os pais. «Só vou se me comprarem pipocas!», reclamou ele durante os dias que antecederam aquele sábado. A promessa acabou por sortir efeito. Comeria pipocas, pois então, se essa fosse a condição para levá-lo à feira.

Foi. Mas detestava aqueles espaços. Tinha pavor, mesmo, da maioria dos carrosseis em que os pais teimavam enfiá-lo. «Diverte-te, querido!», pedia-lhe a mãe com um tom de voz carinhoso, num pedido que se transformava frequentemente, como que por artes mágicas, e perante a sua constante renitência, numa obrigação.

«Diverte-te... bah!», bufava ele de cada vez que tinha de se enfiar em aviões ridículos, montar-se em zebras, equilibrar-se dentro de dragões ou subir e descer em helicópteros cor-de-rosa. «Ganda merda!», pensava para com os seus botões enquanto contemplava os pais, que lhe sorriam e acenavam de cada vez que passava junto deles nas voltas e reviravoltas do carrossel.

Já estava naquele corre-corre, de carrossel para carrossel, há mais de duas horas. «Queres andar nos carrinhos de choque?», perguntou o pai. «Tenho escolha?», pensou ele, encolhendo os ombros e respondendo afirmativamente com a cabeça. E lá foram. Enfiaram-se os dois num carrinho acanhado. À falta de espaço onde coubessem os dois, ficou quase ao colo do pai. Levavam três fichas. O equivalente a três voltas. Mal o pai pôs em acção a segunda ficha, equivalente à segunda volta, ele, enjoado, vomitou-se todo.

O pai, aborrecido, aproximou-se da borda da pista de carrinhos de choque e saiu do veículo visivelmente chateado. A mãe, solicita, abeirou-se deles, desmultiplicando-se em perguntas e tentando limpar aquele líquido viscoso das roupas de pai e filho.

«Toma!... Tinha ido comprar-te as pipocas entretanto, querido», disse ela, entregando o pacote de pipocas à criança. «Bem podes enfiá-las no cu!», respondeu ele, agoniado, e claramente farto de estar ali. Levou dois tabefes e ficou de castigo durante duas semanas.