domingo, junho 06, 2004

Resultados da segunda sondagem

Depois da adesão em massa registada no primeiro inquérito deste blog, tenho de confessar que me senti algo defraudado com a abstenção verificada na segunda sondagem promovida pelo Esquizofrenias de Bolso.

Ainda assim, e apesar de achar que os miseráveis 43 votos que contei não me deveriam merecer o mínimo comentário, aqui fica para a posteridade o resultado final da sondagem: de acordo com as opiniões dos leitores deste blog, a banda sonora ideal para tirar macacos do nariz é a música «History Repeating», dos Propellerheads.

O tema em causa ganhou com 21 por cento dos votos, contra os 16 por cento acumulados pelas duas opções que ficaram na segunda posição: «Ne me quitte pas», de Jacques Brel, e «Recuso-me a responder a inquéritos cretinos», lado B do single «Eu vi um sapo», da saudosa Maria Armanda.

E só para não se armarem em parvos, decidi continuar a insistir na porra dos inquéritos, deixando já aqui bem expressa a minha meta: só desisto quando ultrapassar a barreira dos 100 votos!

Até breve.

quinta-feira, junho 03, 2004

Os dedos dos pés

Naquele dia voltou a não conseguir encontrar os dedos dos pés. Teimosos, escondiam-se no recanto dos sapatos, confortavelmente protegidos pelas peúgas cinzentas esburacadas, refúgio perfeito para dedos de pés irritantemente armados ao pingarelho e com a mania das independências.

Pelos buracos das peúgas, os dedos dos pés espreitavam e deitavam a língua de fora quando ele tentava apanhá-los. «Bleghh!» guinchavam os dedinhos, encolhidos no fundo do sapato, soltando risinhos nervosos enquanto se escapavam sorrateiramente ao seu dono.

Cansado da situação, decidiu tomar medidas drásticas. Com um martelo bateu-lhes as vezes suficientes para deixá-los atordoados. «Já completamente zonzos não podem ir longe», pensou. E assim aconteceu. Descalçou os sapatos e lá estavam eles, todos, dez no total, inertes, ensanguentados, alguns já tortos, quase desfeitos.

Faltava a última etapa para terminar com aquele suplício que andava a atormentá-lo de forma absolutamente inexplicável. Pegou no serrote e cortou-os a todos. «Vejam só quem ri agora, seus inúteis!!», vociferou em direcção ao chão, onde jaziam os dez dedinhos.

Passou a ser muito mais feliz a partir desse dia, com dez silenciosos cotos em vez daqueles insuportáveis dedos.

quarta-feira, junho 02, 2004

Uma tragédia como outra qualquer

A fava Sofia era a mais bela das favas da sua geração. Não havia conhecimento, nos imensos hectares plantados pelo senhor Hermínio, de fava mais perfeita e graciosa, predicados a que aliava inteligência e porte atlético verdadeiramente fora do comum para uma leguminosa como ela.

A maior amiga da fava Sofia era a fava Sónia, uma fava em nada comparável com a fava Sofia. Pequena, frágil e mirrada como poucas favas da História da agricultura Ocidental, a fava Sónia mais parecia uma passa. Entristecia-a, naturalmente, esse facto, mas a sólida amizade que construiu com a sua amiga ao longo dos tempos ajudou-a a compensar o desgosto que fazia dela uma fava altamente complexada.

Apesar de aparentemente tão pouco terem em comum, Sofia e Sónia conseguiram erguer e solidificar, com o passar dos anos, uma relação por muitos invejada, tanto na herdade do senhor Hermínio como nas próprias herdades vizinhas, onde não havia registo de existência de produtos agrícolas com tamanhos laços de amizade a uni-los. Excepção feita, talvez, à união de facto que juntara a couve Isaura e o pepino Maurício, ali no baldio por detrás do estábulo da herdade da Dona Suplícia. Mas essa era uma história com final feliz, em tudo diferente do final deste dramático conto da fava Sofia e da fava Sónia. Retomemos, por isso, a história que verdadeiramente interessa.

A amizade entre ambas surgiu de forma espontânea, quando se cruzaram na cafetaria do salão de congressos em que decorria uma sessão de esclarecimento sobre contribuição autárquica. «Uma chatice, este congresso», desabafaram ambas ao mesmo tempo, enquanto bebiam um café encostadas ao balcão. Os risos que se seguiram foram apenas o preâmbulo para anos e anos de vivência conjunta.

A partir desse instante, passaram a ser inseparáveis. Quase siamesas mesmo. Cresceram juntas. Cresceram, como quem diz. Cresceu a fava Sofia. Porque a fava Sónia, essa, a bem da verdade, pouco cresceu desde o seu nascimento. Mas passaram a infância juntas. Viviam tudo lado a lado. As alegrias, as tristezas, os sucessos, os percalços, as brincadeiras... O mundo parecia girar em torno delas e da sua amizade.

A partir da adolescência, no entanto, começaram a surgir problemas na relação das duas favas amigas. Porque à medida que a fava Sofia se desenvolvia e dava corpo aos atributos que dela faziam a fava mais apetecida das redondezas, a fava Sónia mantinha-se praticamente na mesma, desajustada da realidade faval, reduzida a um corpinho insignificante que não suscitava ponta de interesse a quem quer que fosse.

«Não há entrecosto que queira ser cozinhado a meu lado», lamentava a fava Sónia, comparando-se, frente ao espelho, com a amiga e deslumbrante fava Sofia. «De que te queixas?!», retorquia a fava Sofia. «Ambicionas tu semelhante fim?! Cozinhada num tacho, rodeada de pedaços de suíno remexidos por uma qualquer colher de pau?... A vida é muito mais do que isso!», dizia-lhe num tom paternalista, enquanto lhe colocava carinhosamente o braço por cima dos ombros.

Irritava-se, a pequenina fava Sónia, com essa atitude. «Puta de merda», pensava para consigo, enquanto esboçava um tímido sorriso amarelo, tentando dessa forma disfarçar a náusea que lhe provocava aquele compadecimento totalmente dispensável.

Nos primeiros tempos ainda tentou recalcar aquele sentimento desprezível, que sabia estar a minar por completo uma relação que não queria ver deteriorada. Mas era complicado. Impossível. Não havia legume que conseguisse ultrapassar aquela humilhação subliminar, aquela forma de estar inocentemente cruel. Os «deixa lá», os «não te preocupes», proferidos por uma fava lânguida que despertava a rebarba de todos os enchidos que com ela se cruzavam. «Como pode ela ter o descaramento de dizer-me que isso não é importante?!?», remoeu a fava Sónia durante meses a fio.

Não encontrava, porém, forma de exorcizar os demónios que irrompiam de forma quase assassina no seu íntimo, impelindo-a a cortar relações com aquela fava que se dizia sua amiga, mas que se revelava, na verdade, uma sonsa incorrigível.

Até ao dia em que explodiu e decidiu exteriorizar tudo o que lhe ia na alma. Quando soube, por intermédio de terceiros, que a fava Sofia estava prestes a casar, que a boda estava agendada para o fim-de-semana seguinte, numa festa que iria decorrer numa vistosa panela de pressão Silampus e para a qual estavam convidadas a grande maioria das favas das redondezas e grande parte dos enchidos da montra do Talho Central.

Mas ela... ela não estava convidada. E não só não estava convidada, como a sua «amiga» lhe tinha ocultado todas as combinações. Agora... Agora sim, percebia. Os constantes adiamentos dos cafés, as recorrentes enxaquecas que Sofia invocava nos últimos tempos para não sair com ela à noite, a forma apressada como a despachava ao telefone por, alegadamente, «ter de estudar».

Sónia bem que desconfiara de todas estas incidências, mas queria continuar a acreditar que era apenas a sua má vontade a funcionar, fruto da raiva miudinha que fora alimentando em relação à sua vistosa amiga. Mas agora, que finalmente abrira os olhos para a realidade, era hora de fazer algo. O desejo de vingança encheu-lhe o peito de supetão. E essa vingança tinha de ser consumada...

Não se conteve e correu desenfreadamente em direcção a casa de Sofia. Quando lá chegou nem bateu à porta. Irrompeu casa dentro e dirigiu-se ao quarto de Sofia, onde ela experimentava a sua casca de noiva. «És uma puta!!! És a fava mais puta que conheci!!!», berrou colericamente, atirando-se-lhe ao pescoço e rasgando com os dentes a casca branca e virginal que Sofia ostentava.

Já quase despida, e cheia de arranhões provocados por Sónia, Sofia jazia no chão, num misto de vergonha e desolação, provocados por aquele incidente que, no entanto, não deixava de ser previsível. «Bem sei, linda Sónia... tens razão, mas....». «Cala-te!!!», interrompeu Sónia. «Não mereces casar e muito menos viver. Morre! Morre!, que é o que te resta fazer se tens dignidade!», vociferou, atirando-lhe para cima do corpo um balde de água a ferver.

Sofia cozeu, murchou e enfim caiu, jazendo morta no chão. Uma fava outrora esplendorosa transformou-se, em escassos segundos, num resquício irreconhecível do legume que antes todos elogiavam. E Sónia sentiu-se vingada. Tirara um peso de cima dos ombros. Era novamente livre de acreditar na amizade e em todos os outros valores que davam algum significado à sua existência.

Abandonou a casa de Sofia, olhou para o sol replandescente e desapareceu no horizonte a cantarolar a plenos pulmões o hino do Uzbequistão.