terça-feira, agosto 22, 2006

Ikaïlanen Turünen

(Texto publicado na 1.ª edição da revista semestral Callema)

No momento em que me foi endereçado o convite para participar nesta primeira edição da 'Callema', estava eu em pleno processo de meditação intelectual, embrenhado em profundos pensamentos sobre a dimensão cósmica da cinematografia do russo Alexander Sokurov.

Até certo ponto, confesso, isto não corresponde bem à realidade, porque o facto é que me encontrava numa espécie de exercício contorcionista, a tentar homogeneizar o corte das unhas dos meus pés. Mas, como devem compreender, introduzir essa imagem no arranque de uma colaboração com uma publicação que se quer de prestígio, não se equipara ao charme de invocar aquele que dizem ser «um superior estilista do cinema contemporâneo» e um «demiurgo de uma experiência filmica totalmente inovadora, mesmo nos círculos mais alternativos». Signifique isto o que significar...

Aceite o convite, dei início a um curto período de reflexão que me permitisse encontrar uma temática rica o suficiente para preencher a realidade dicotómica inerente a qualquer espaço de expressão cultural: por um lado, usar uma terminologia absurda para demonstrar conhecimentos linguísticos; por outro, abusar de citações, referências e palavras com hífens para evidenciar a amplitude do meu intelecto. Uma equação que teve como resposta clara e evidente o nome do intelectual finlandês Ikaïlanen Turünen.

Para vos traçar uma breve mas necessária contextualização ao porquê do meu apreço pela obra de Turünen, convém começar por explicar-vos que o meu primeiro contacto com este génio nórdico aconteceu quando, há sensivelmente oito anos, 'tropecei' numa crónica por ele assinada no semanário finlandês «Sukkütunasten», jornal para o qual escreve há 37 anos. Uma colaboração que foi a sua rampa de lançamento para o reconhecimento unânime nos circuitos intelectuais frequentados pelos espíritos mais eruditos.

Os primeiros três anos desta duradoura experiência ficaram marcados pela sua insistência em assinar textos em branco, acontecimento que ficou, todavia, para sempre marcado como a sua marca de genialidade. E de preserverança. «É o purismo da escrita no seu esplendor», insistia, perante a relutância dos editores em concederem-lhe espaço na publicação.

Ainda assim, a nível experimental, cederam. E a aposta arrojada do jornal acabou por resultar em pleno, tendo o tempo confirmado a razão de Ikaïlanen Turünen: as suas crónicas foram um retumbante sucesso e afirmaram o semanário como título de referência no panorama da imprensa europeia. Anos mais tarde o autor publicou uma antologia em três volumes com essas crónicas, tendo a edição dos livros redundado num êxito de vendas até hoje inigualável em solo finlandês.

Abertas as portas do sucesso e os braços do público para acolher o brilhantismo deste fenómeno emergente da filosofia pós-moderna, Turünen pôs mãos à obra e trilhou o percurso que o conduziu de forma fulgurante aos píncaros da fama. Começou a publicar livros numa base mensal, conjugando esse feito, de forma absolutamente espectacular, com a manutenção das crónicas no «Sukkütunasten».

O facto é que Ikaïlanen Turünen aliava à inesgotável e incontestável veia criativa uma proficuidade tal que parecia, por vezes, ter o dom de dividir-se em dois para dar vazão a tamanha produtividade intelectual. Os rumores acerca desse dom adensaram-se sobremaneira quando Turünen apareceu certo dia na redacção do jornal sem as pernas para entregar uma crónica: «Estou a acabar de escrever o posfácio do meu próximo livro», justificou na ocasião.

Rumores à parte, a verdade é que rapidamente Ikaïlanen Turünen se converteu num mito vivo para as gerações contemporâneas da 'inteligentzia' cultural do Ocidente. Sobretudo quando, após ultrapassar, a sua fase de escrita minimalista, o pensador finlandês lançou, em 1979, a sua obra maior: «Virttanen Paruÿy us us Zsinga!», livro que se constituiu como um terramoto no panorama intelectual da época e lhe garantiu de imediato o direito a entrar para o panteão dos grandes pensadores intemporais. Ultrapassa definitivamente o rótulo de «pensador light» que alguns arautos da crítica lhe haviam colado, por o entenderem apenas como mero fenómeno de sucesso meteórico de vendas, sem real conteúdo literário-filosófico.

«Virttanen Paruÿy us us Zsinga!» (numa tradução livre, que ouso arriscar, significará algo do género «Como cerejas e não me farto»), não foi, de facto, uma obra vulgar. Dificilmente assimilável, mesmo. Principalmente ao longo dos primeiros dois capítulos - «o um e o dois», como gosta de sublinhar -, nos quais Turünen nos brinda com 86 páginas de espectaculares arrotos. Arrotos esses que, podendo parecer à primeira vista descabidos, vêm posteriormente a revelar-se referências semiológicas fundamentais para a real percepção do restante livro, onde o autor se dedica a desconstruir os escritos filosóficos do dinamarquês Sören Kierkegaard, um dos seus reconhecidos ódios de estimação.

Numa das mais célebres passagens de «Virttanen Paruÿy us us Zsinga!», Turünen faz uma clara, crítica e mordaz alusão a 'O Banquete', referindo-se à obra de Kierkegaard em tom depreciativo: «Brindes, brindes e mais brindes. Discursos, discursos e mais discursos. Pseudo-banquetes prenhes de retóricas balofas. Acaso saberão que a excelsitude de um real banquete está na existência de comida digna desse nome? Trufas?! Bifanus urgentus est para que se possa discutir convenientemente a necessidade de amar ou seduzir!».

É assim Ikaïlanen Turünen. Directo, irascível, contundente. Por vezes insuportável, mas sempre coberto de razão. Excepto às quartas-feiras, dia em que costuma sair à rua coberto de chantilly. Mas no que toca à sua razão, o mais marcante é o facto de ela nos ser sempre apresentada de forma sublime e categórica, deixando-nos inevitavelmente sem fôlego ao lê-lo, perante a trepidante força e originalidade dos seus argumentos. Os 478 livros que escreveu até hoje, tal como as crónicas semanais com que continua a brindar-nos no «Sukkütunasten», são a prova maior da abundância do génio deste finlandês que, eternamente dado à polémica, continua a fazer questão de ligar o microfone a pedais de distorção quando convidado a participar em colóquios.

Termino deixando-vos uma curta passagem da crónica que tive o privilégio de ler na semana passada e que motivou a escrita deste texto. Um breve trecho de prosa que, sob o singelo título «Penas Brancas Para um Deus Estrábico», testemunha uma vez mais a eloquência de Turünen. Passo a citar: «É frequente sentir frio durante a noite. Nos tornozelos, sobretudo. Quererá Deus dizer-me algo ao fazer-me passar por tal situação? Quererá Deus dizer-me 'tapa os tornozelos, filho, senão constipas-te'? Pelo sim, pelo não, tapo. Os tornozelos. E os ouvidos também. Porque se durante o sono eu ouvisse a voz de Deus, juro-vos que não pregava olho até ao dia seguinte. E não há coisa mais maçadora do que uma noite mal dormida». Palavras para quê?